O QUE É SEXO NORMAL?

 

O que é sexo normal?
O manual da psiquiatria está sendo revisto. Entre os novos distúrbios deverá estar o impulso incontrolável de fazer sexo
Fernanda Colavitti e Rodrigo Turrer
Rogério Cassimiro
 

AMARRADA - Praticante de sadomasoquismo imobilizada por uma técnica japonesa, em um clube BDSM de São Paulo. Prazer ou distúrbio?

A paulistana Priscila S., de 49 anos, considera sua vida absolutamente normal. Ela dá aulas de inglês, faz ginástica, gosta de ir ao teatro e a bares e restaurantes com o marido e os amigos. Priscila diz que seu casamento sempre foi ótimo e está ainda melhor desde 2000, depois que o casal descobriu o BDSM, sigla para a expressão Bondage, Disciplina, Sadismo e Masoquismo. Os adeptos da prática gostam de dominar ou ser submissos para atingir o prazer sexual, o que pode ou não envolver dor. Há os que, como Priscila, se excitam ao ser amarrados ou ficar pendurados nus por horas sendo observados. E aqueles que, como seu marido, sentem prazer em amarrar, dominar e, às vezes, dar mais do que uns tapinhas. Tudo é feito com o consentimento do outro. “É uma sensação indescritível de bem-estar”, afirma a professora. A prática que dá prazer a Priscila é classificada como distúrbio psiquiátrico pela Associação de Psiquiatria Americana (APA). A entidade elabora o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Distúrbios Mentais (DSM), referência para médicos de todo o mundo.

Publicado em 1952 e atualizado pela quarta e última vez em 1994 (houve apenas uma revisão de texto em 2000), o documento de 943 páginas, que descreve cerca de 300 distúrbios psiquiátricos – entre eles os sexuais –, está sendo reformulado. O DSM-5 será publicado em 2013, mas a lista com as propostas dos comportamentos que passam a ser considerados anormais, os que deixam de ser e os que se mantêm foi divulgada em fevereiro. Aqueles que, como Priscila, não concordam com a permanência das práticas de BDSM no manual, como está sendo proposto, ou com qualquer outro item da lista, poderão se manifestar. O rascunho ficará disponível na internet (www.dsm5.org) até abril.

Se depender do apoio de maridos pegos sobre a cerca, uma das propostas que deve fazer sucesso é transformar o impulso sexual excessivo – ou compulsão sexual – oficialmente em transtorno psiquiátrico. Estima-se que o problema – caracterizado pela obsessão incontrolável pelo ato sexual, capaz de prejudicar a capacidade de concentração e de dedicação às tarefas do dia a dia e comprometer o trabalho, a saúde e os relacionamentos da pessoa – afete cerca de 6% da população dos Estados Unidos. Mesmo assim, tal impulso incontrolável é visto com certa desconfiança, dada a quantidade de homens que já apelaram a ele para justificar suas aventuras sexuais fora do casamento. Depois de antecessores famosos como os atores Michael Douglas e David Duchovny, o compulsivo da vez é Tiger Woods, que deu uma entrevista coletiva se desculpando por seu problema incontrolável na semana passada. O campeão de golfe passou um tempo internado para tratar da suposta compulsão sexual depois que vieram à tona seu caso extraconjugal com uma garçonete de Nova York e aventuras com pelo menos uma dezena de outras mulheres.

Estima-se que a hipersexualidade prejudique a vida de 6% da população americana

A vantagem de incluir no novo manual uma doença que já é tratada pela medicina, segundo o psiquiatra Luiz Alberto Hetem, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, é poder estudá-la mais detalhadamente e descobrir quais tratamentos e intervenções dão melhores resultados. No caso da hipersexualidade, isso também poderá aumentar a credibilidade dos pacientes. “Mas pode ter como efeito colateral mais justificativas médicas para casos de adultério”, diz. De acordo com Hetem, mais controversa do que a proposta de incluir a hipersexualidade no rol das doenças psiquiátricas é a que pode servir de argumento para livrar estupradores da cadeia. Ele diz que essa é a segunda vez que se considera incluir no DSM o Transtorno Obsessivo Coercivo, definido como “fantasias e desejos intensos com a possibilidade de forçar outra pessoa a fazer sexo”. A primeira foi em 1984, na terceira revisão do documento. A inclusão foi rejeitada, pois os responsáveis concluíram que seria impossível validar de maneira confiável o que diferenciava os estupradores doentes dos antissociais. A proposta atual continua com a mesma dificuldade. Mesmo os especialistas que não são contrários a ela, como o psiquiatra Aderbal Vieira Júnior, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes, da Unifesp, acreditam que ela deve ser barrada novamente. “O conceito é bom, não me oponho. Nem toda pessoa que comete estupro tem personalidade amoral, a maior parte sofre com o que está fazendo”, afirma. “Mas é fato que qualquer estuprador pego vai alegar o transtorno. E o diagnóstico é feito com base no relato do paciente.”
Comportamentos sexuais só devem ser tratados quando prejudicam a vida de alguém, dizem psiquiatras

Um dos grandes problemas de transformar comportamentos em distúrbios mentais é definir o limite entre a normalidade e o excêntrico, o inofensivo e o prejudicial. Em relação ao sexo, quais práticas são naturais e quais precisam de intervenção médica? Com base em que isso é definido? O conceito de saudável para a Organização Mundial da Saúde (OMS) define-se pelo “bem-estar biopsicossocial do ser humano”. Guiados por essa definição, os profissionais que estudam a mente humana dizem que comportamentos sexuais só precisam ser tratados quando afetam negativamente a vida do indivíduo ou dos que se relacionam com ele. “Se a pessoa não sofrer e não prejudicar terceiros, não é uma patologia”, diz Ronaldo Pamplona, psiquiatra e sexólogo, autor do livro Os 11 sexos, as múltiplas faces da sexualidade humana. O objetivo do DSM, portanto, é apenas servir como base para o diagnóstico e a identificação de um distúrbio.

“A partir do reconhecimento do problema é possível conduzir um tratamento não para curar, mas para reduzir o sofrimento da pessoa.” E apenas quando este for o desejo do indivíduo, como foi o do advogado paulistano que prefere ser identificado como Márcio (nome adotado para proteger sua identidade). Ele é crossdresser, alguém com compulsão de se vestir e se portar como mulher, e fez 15 anos de terapia. Aos 46, casado, com uma filha, profissional de sucesso, leva uma vida tranquila. Duas vezes por semana ele se transforma em Márcia, em um apartamento que mantém no centro da cidade. “Não me sinto doente. Sou diferente dos padrões morais e éticos da sociedade”, diz. “O fato de eu não poder pôr para fora meus sentimentos é que me causava problemas, mas a terapia me ajudou a me aceitar.” O comportamento do advogado está descrito na atual versão do DSM, no capítulo das “parafilias”, definidas como preferências ou obsessões por práticas sexuais socialmente não aceitas. A proposta é que continue no DSM-5.

 

Revista Época

Faça o teste e descubra se você sofre de transtorno hipersexual

Márcio tem duas visões distintas sobre a lista de parafilias do manual psiquiátrico, que também inclui – e deverá manter – o voyeurismo (obtenção de prazer sexual através da observação de outras pessoas) e o fetichismo (uso compulsivo de objetos ou partes do corpo como estímulo à satisfação sexual.). Como advogado, é contra a retirada de algumas delas da classificação. Na Justiça, é preciso comprovar a “doença” para ter direito a atendimento médico público – inclusive para a operação de mudança de sexo em transgêneros. Como crossdresser, não acredita na necessidade de estar incluído numa lista de distúrbios. “Os comportamentos desviantes têm de ser analisados caso a caso, não precisam estar numa lista”, diz.

A lista é necessária, afirmam os médicos, porque ela vai orientar os diagnósticos clínicos e a pesquisa científica. Segundo a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Projeto Sexualidade do Hospital das Clínicas de São Paulo, a classificação ajuda a normatizar. “Um psiquiatra recém-formado se baseia nela até aprender todas as características que fazem parte de determinado quadro clínico”, diz. Daí a necessidade das revisões periódicas. Um psiquiatra que estudou há 30 anos aprendeu que a pedofilia era um distúrbio exclusivamente masculino. Não é verdade, hoje se sabe. Até 1970, a homossexualidade era tratada como doença e fazia parte do DSM. Talvez não tivesse permanecido ali por tanto tempo se os homossexuais tivessem tido a oportunidade de se manifestar, como agora podem fazer os sadomasoquistas, os crossdressers e todos os que se identificarem na lista que está sendo proposta e não concordarem com ela. “Ainda que a decisão final caiba ao grupo de pesquisadores envolvidos na revisão, tenho certeza de que a opinião pública vai pesar”, diz o psiquiatra Luiz Alberto Hetem.

 

A lista das doenças sexuais

As propostas serão discutidas publicamente até abril

 

Entram no novo manual psiquiátrico

Distúrbio hipersexual – Conhecido como impulso sexual excessivo, o problema se caracteriza por fantasias, desejos e comportamentos sexuais tão intensos que trazem prejuízos à vida social e profissional da pessoa – e que persistem por um período acima de seis meses

Distúrbio parafílico coercivo – Fantasias e desejos intensos com a possibilidade de forçar outra pessoa a fazer sexo. O doente sente-se perturbado ou prejudicado por essa fixação, que passa a ser considerada distúrbio se durar mais do que seis meses

Distúrbio da excitação sexual em mulheres – Falta de interesse e excitação sexual (ausência de lubrificação) por um período de até seis meses, desde que a situação cause desconforto e prejuízo à pessoa. Se a mulher não se incomoda com a ausência do desejo, não é considerada doente

Distúrbio da excitação sexual em homens – A descrição é igual à das mulheres, com a troca de lubrificação por ereção

Dor pélvico-genital ou desordem da penetração – Conhecida anteriormente como “transtornos sexuais dolorosos” (dispareunia e vaginismo), a dor atinge as mulheres antes, durante ou depois da penetração. Tem causa emocional quando os exames não apontam nenhum problema orgânico

 

Deixa de ser um problema sexual e passa para a categoria de fobias

Distúrbio da aversão sexual – Aversão extrema e persistente a todo tipo de atividade sexual, caracterizada pelo medo e, às vezes, acompanhada por episódios de pânico. A aversão sexual ocasionalmente ocorre em homens, mas é muito mais comum em mulheres

 

A evolução dos costumes

Até o sexo por prazer já foi considerado fora da normalidade

Sonhos eróticos - A igreja considerava-os quase como alucinações. No século XIX, foi usado por psiquiatras como chave para o diagnóstico de outros comportamentos sexuais tidos como patologia.

Homossexualidade - Era prática normal na Roma e na Grécia antiga. Tornou-se pecado com a expansão da cristandade. No século XIX, foi definida como patologia por médicos, até virar uma variante de comportamento normal nos anos 1970.

Masturbação - Era ritualística na Grécia, mas São Tomas de Aquino a classificou como um pecado pior do que fazer sexo com a mãe. Foi considerada 'patologia grave' até os anos 1950.

Orgasmo feminino - Os gregos (eles, de novo) consideravam o orgasmo feminino vital para a 'liberação da semente' da procriação. No século XiX, médicos diziam que o prazer feminino poderia levar à loucura.

Sexo oral e anal - Modalidades sexuais aceitas em diversas culturas também foram transformadas em pecado na Idade Média. A partir do século XIX, se tornaram manifestações patológicas e de anormalidade.

Heterossexualismo - Até o século XIX, o termo era usado para definir aqueles que queriam fazer sexo por prazer, não para procriação. O comportamento da busca do sexo pelo prazer era considerado uma doença.

<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI124233-15228,00-O+QUE+E+SEXO+NORMAL.html>

 

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