SOBRA DINHEIRO NA PREVIDÊNCIA
Está sobrando (muito) dinheiro na
Previdência; entenda os números
Especialistas desmentem números que anunciam rombo na previdência
Cátia Guimarães
EPSJV/Fiocruz,
22 de Julho de 2016 às 17:49
“As pessoas não vão aceitar. Se elas tiverem acesso a essas informações, não
podem aceitar isso”. A frase é da economista Denise Gentil, professora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A indignação que ela aposta que
mobilizará a maioria da população brasileira é com a proposta de uma nova
reforma da previdência, que o governo interino promete apresentar e aprovar no
Congresso Nacional ainda este ano.
As informações que alimentariam essa recusa são simplesmente a negação de tudo
que você lê e ouve diariamente nos jornais: na pesquisa feita para sua tese de
doutorado, Denise mostra, com dados oficiais, que o Brasil não tem nenhum rombo
na previdência social. Mais do que isso: anualmente, sobra (muito) dinheiro no
sistema público que hoje garante aposentadorias e pensões a 32 milhões de
trabalhadores.
Até agora, o ‘otimismo’ da pesquisadora em relação a uma ‘grita’ da população
tem razão de ser: segundo a pesquisa ‘Pulso Brasil’, realizada pelo Instituto
Ipso em junho deste ano, nos 70% de desaprovação do governo Temer, a forma como
o interino vem atuando em relação à reforma da previdência é o que tem a maior
taxa de rejeição (44%).
O fato é que, como resposta à crise econômica, uma nova reforma da previdência
vem sendo desenhada desde o ano passado. Ainda no governo da presidente Dilma
Rousseff, foi criado o Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e
Renda e de Previdência Social, que produziu um relatório de diagnóstico mas não
chegou a apresentar ou apreciar propostas.
Após o afastamento temporário da presidente, o governo interino teve pressa:
montou um novo Grupo de Trabalho, com a participação de quatro centrais
sindicais — Força Sindical, União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central dos
Sindicatos Brasileiros (CSB) e Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST) —,
além da Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip)
e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(Dieese) para encaminhar o tema.
Na primeira reunião, o governo interino apresentou o seu diagnóstico. Na
segunda, as centrais entregaram propostas para aumentar as receitas da
previdência. No dia 28 de junho, aconteceu o terceiro e último encontro. Nele,
os ministros interinos encaminharam a substituição desse grupo por outro mais
reduzido, agora com a presença de um representante da Confederação Nacional da
Indústria (CNI), que até então não vinha participando das negociações, um
integrante do governo interino e um porta-voz dos trabalhadores (Dieese).
Antecipando medidas de 'economia' que atingem diretamente a previdência, o
governo interino emitiu, no dia 7 de julho, um Medida Provisória nº 739/2016 que
dificulta ainda mais o acesso ao auxílio-doença e à aposentadoria por invalidez.
Entre as mudanças implementadas, está a interrupção automática do benefício no
prazo de 120 dias, obrigando o segurado a requerer a prorrogação junto ao INSS,
e a criação do Bônus Especial de Desempenho Institucional por Perícia Médica em
Benefícios por Incapacidade, que significará um "incentivo" no valor de R$ 60
pago pelo governo aos médicos por cada perícia realizada além da "capacidade
operacional ordinária".
Antecipando o resultado das perícias que ainda serão feitas, o governo já
calcula que essas medidas gerarão uma economia de R$ 6,3 bilhões anuais, às
custas da diminuição de benefícios dos trabalhadores.
A proposta oficial de reforma da previdência, no entanto, não tinha sido
apresentada até o fechamento desta matéria. Mas isso é apenas um detalhe. Desde
o seu programa antecipado de governo até as muitas declarações de Henrique
Meirelles, ministro interino da fazenda, e do próprio Temer, não é segredo para
ninguém que, entre outras coisas, o governo provisório quer instituir (e
aumentar) a idade mínima para a aposentadoria e restringir as regras da
previdência rural.
O argumento é que, em nome do ajuste fiscal, são necessárias medidas estruturais
que reduzam os gastos do Estado. E a previdência aparece destacada como o maior
deles, responsável por um rombo que, segundo previsões do governo interino, deve
chegar a R$ 136 bilhões este ano. Esses números, no entanto, são desmentidos por
pesquisadores e entidades que se dedicam ao tema.
Contas que não batem
Por mais que a matemática seja considerada uma ciência exata, quando o assunto é
a situação da previdência no Brasil, há muito tempo que dois mais dois não têm
dado quatro. Lidando com os mesmos dados primários, governos (o interino e o da
presidente Dilma) e estudiosos chegam a resultados diametralmente opostos.
Para se ter uma ideia, enquanto os economistas do governo provisório apontam em
2015 um déficit de R$ 85 bilhões, no mesmo ano as planilhas da Anfip anunciam um
superávit de R$ 24 bilhões. E a comparação com os anos anteriores mostra que, em
função do aumento do desemprego, que diminui a arrecadação, esse saldo positivo
foi bem menor do que os R$ 53,9 bilhões que sobraram em 2014 e os R$ 76,2
bilhões de 2013, anos em que, do lado do Planalto, já se falava em déficit.
“O governo faz um cálculo muito simplório. De um lado, ele pega uma das
receitas, que é a contribuição ao INSS, dos trabalhadores, empregadores,
autônomos, trabalhadores domésticos, que é o que a gente chama de contribuição
previdenciária. Do outro, pega o total do gasto com os benefícios: pensão,
aposentadoria, todos os auxílios — inclusive auxílio doença,
auxílio-maternidade, auxílio-acidente — e diminui. Então, isso dá um déficit”,
explica Denise Gentil.
A primeira vista, pode parecer um erro matemático. Isso porque a Constituição
Federal estabelece, no artigo 194, que, junto com a saúde e a assistência
social, a previdência é parte de um sistema de seguridade social que conta com
um orçamento próprio. Esse orçamento, por sua vez, é alimentado por tributos
criados especificamente para esse fim.
Assim, diferente do que os governos fazem, na parcela de cima da conta da
previdência — a receita — devem ser incluídas não apenas as contribuições
previdenciárias mas também recursos provenientes da Contribuição Social Sobre
Lucro Líquido (CSLL), Contribuição sobre o Financiamento da Seguridade Social (CSLL)
e do PIS-Pasep.
Para se ter uma ideia da diferença que esse ‘detalhe’ faz, contadas apenas as
contribuições previdenciárias, a receita bruta da previdência em 2014 foi de R$
349 bilhões para pagar um total de R$ 394 bilhões de benefícios. Essa conta, que
Denise caracteriza como “simplista”, mostra um déficit de R$ 45 bilhões — ainda
assim muito menor do que o anunciado pelo governo. Quando, no entanto, se
considera a receita total, incluindo os mais de R$ 310 bilhões arrecadados da
CSLL, Cofins e PIS-Pasep, esse orçamento pula para R$ 686 bilhões.
Talvez você esteja supondo que o dinheiro que sobrou no orçamento da seguridade
social mas faltou no da previdência tenha sido usado nas outras duas áreas a
que, constitucionalmente, ele se destina: saúde e assistência. Mas essa é uma
meia verdade. A soma dos gastos federais com saúde, assistência e previdência
totalizou, em 2014, R$ 632 bilhões. Como o orçamento da seguridade foi de R$ 686
bi, no final de todas as receitas e todas as despesas, ainda sobram R$ 54
bilhões. E como esse saldo se transforma em déficit? Com uma operação simples:
antes de destinar o dinheiro para essas áreas, o governo desvia desse orçamento
20% do total arrecadado com as contribuições sociais, o que, em 2014, significou
um ralo de R$ 60 bilhões.
Na prática, isso significa que o orçamento que a Constituição vinculou, governos
e parlamentos vêm desvinculando todos os anos, desde 1994. Trata-se da
Desvinculação de Receitas da União (DRU), um mecanismo aprovado e renovado no
Congresso a cada quatro anos que autoriza os governos a usarem livremente parte
da arrecadação de impostos e contribuições, sempre sob o argumento de que é
preciso desengessar o orçamento para melhor administrar o pagamento da dívida
pública.
Ela acaba de ser mais uma vez prorrogada no Congresso, agora por um período mais
longo (oito anos e não quatro) e com uma alíquota maior, de 30%. Segundo
cálculos da Anfip, em 12 meses isso significará o desvio de cerca de R$ 120
bilhões arrecadados por meio de contribuições sociais, que deveriam alimentar o
caixa da seguridade social. “Se a previdência é deficitária, o governo vai
retirar 30% da onde? Como um sistema que está à beira de quebrar pode ceder 30%
para outros fins que nem se precisa justificar?”, provoca Sara Graneman,
professora da Escola de Serviço Social da UFRJ e pesquisadora do tema.
Por mais contraditório que seja, a DRU fornece o amparo legal para o cálculo dos
governos, que contraria a garantia prevista na Constituição. Mas aqui é
necessário cautela.
Primeiro porque nem com a DRU o “rombo” chega perto do que os governos e jornais
alardeiam. Segundo porque, mesmo com a DRU, o orçamento continuaria positivo se
os governos não retirassem outra bolada do caixa da previdência e da seguridade
por meio de isenções fiscais, ou seja, tributos que deixam de ser cobrados das
empresas, como forma de ‘incentivo’.
Agora mesmo em 2016, ano em que a reforma da previdência vem sendo debatida como
prioridade tanto pelo governo eleito afastado quanto pelo governo interino, a
Lei Orçamentária Anual, enviada pelo Executivo e aprovada pelo Congresso, prevê
R$ 69 bilhões de renúncia apenas dos recursos da previdência, sem contar o
conjunto das contribuições que financiam toda a seguridade social.
A simples decisão de não abrir mão desses recursos faria com que a previdência
fechasse as contas no azul. “Você diz que a previdência tem um déficit de R$ 85
bilhões mas renuncia ao equivalente a 3% do PIB de receita? E depois quer que a
sociedade aceite uma reforma da previdência?”, questiona Denise Gentil.
Isso sem contar a sonegação fiscal que, segundo cálculos do Sindicato Nacional
dos Procuradores da Fazenda Nacional, impediu que R$ 453 bilhões chegassem aos
cofres públicos no ano passado. Em outras palavras: o déficit é produzido, não
por fórmulas matemáticas, mas por opções políticas.
“Ninguém discute neste país os mais de R$ 501 bilhões que foram bastos no ano
passado com os juros da dívida. Ninguém discute os mais de R$ 200 bilhões que
foram gastos só para segurar a taxa de câmbio. Mas discute-se o fato de que 70%
dos benefícios da previdência são de até dois salários mínimos. É uma loucura!”,
diz Denise.
Sara completa: “Não é a estrutura de financiamento nem a pirâmide etária que têm
problemas. O problema é a retirada de recursos. Essa é a maior pedalada que o
Brasil tem”.
Concepções que não batem
Denise é enfática em afirmar que “não faz sentido falar em déficit da
previdência”. E, ao dizer isso, ela não está apenas repetindo que as contas do
governo estão erradas. “Trata-se de um princípio filosófico”, explica,
defendendo a concepção que orientou o capítulo de seguridade social da
Constituição. “A ideia é nós termos um sistema de proteção social que abrange as
pessoas na velhice, na adolescência, na infância…”, exemplifica, para justificar
por que essas áreas, que atendem a necessidades sociais, têm que ser geridas
pela demanda e não pela oferta de recursos disponíveis.
O grande salto da Constituição foi compreender que, como sistema voltado a
garantir direitos, a seguridade deveria ser “financiada por toda a sociedade, de
forma direta e indireta”.
O envelhecimento da população e a mudança na pirâmide etária brasileira, por
exemplo, que têm sido usados como um dos principais argumentos em defesa de uma
nova reforma, já estavam previstos no princípio que regeu esse capítulo da
Constituição.
Essa é uma das razões para que se tenha um orçamento composto não só por
contribuições dos próprios trabalhadores e seus empregadores, mas também por
tributos pagos pelas empresas em geral. A ideia era exatamente garantir
sustentabilidade mesmo quando a população de idosos, que usufrui da
aposentadoria, superasse a população economicamente ativa, que contribui para
ela.
“A Constituição de 1988 foi um raio em céu azul. Porque a partir dali o que
houve foi uma dilapidação dos princípios constitucionais, foi a ilegalidade
sendo patrocinada pelo Estado para restringir direitos sociais”, lamenta Denise,
que completa: “É uma disputa antiga e será eterna porque é uma disputa de
classe”.
Problemas do envelhecimento?
De fato, embora não tenha apresentado uma proposta oficial, a medida mais
alardeada na reforma da previdência prometida pelo governo interino é o
estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria. O argumento: a população
brasileira está envelhecendo e, em 2040, essa mudança da pirâmide vai tornar o
sistema insustentável. “Acho um certo excesso de zelo. Os governos não conseguem
prever a próxima crise e querem nos convencer do que vai acontecer em 2040?”,
ironiza Sara Granemann.
O argumento da pressão demográfica também não é novo. O relatório elaborado pelo
grupo técnico instituído pelo governo Dilma, que discutiu o tema até pouco antes
do afastamento da presidente, informa que, em 2015, a expectativa de vida do
brasileiro era de 75,4 anos e que, em 2042, esse tempo médio de vida subirá para
80,07 anos.
“O aumento da longevidade da população demanda ações específicas para a
sustentabilidade da seguridade social”, conclui o relatório. Sara ressalta que
essa mudança etária deveria ser comemorada e não servir de pretexto para se
retirar direitos da população. “O aumento da expectativa de vida é um feito da
humanidade no século 20. Se elevar para todo mundo a aposentadoria para 65 anos,
por exemplo, você terá pessoas se aposentando a menos de dez anos da morte”,
alerta. Declarações mais recentes do Palácio do Planalto, no entanto, dão conta
de um cenário ainda pior: matéria publicada no jornal O Globo no último dia 27
de junho afirma que o “governo Temer quer permitir aposentadoria só a partir dos
70 anos”. A notícia é que o projeto que está sendo elaborado proporia idade
mínima de 65 anos para agora, ampliando para 70 daqui a 20 anos. “O cálculo é o
quanto mais perto da morte o direito da aposentadoria deve chegar”, denuncia
Sara.
Vilson Romero, presidente da Anfip, explica que a primeira desmistificação que
precisa ser feita é exatamente em relação a essa expectativa de vida. E aqui o
pulo do gato do discurso governamental está em divulgar apenas o cálculo da
“média”. “Como estabelecer uma idade mínima para aposentadoria num país como o
Brasil, onde no campo se morre aos 55 anos e no Rio Grande do Sul há quem viva
até os 85, 90 anos?”, questiona, destacando a maioria dos brasileiros que vivem
sob condições precárias de trabalho morre antes de fazer jus à aposentadoria.
Mas os especialistas ouvidos pela Poli alertam ainda para uma segunda
desmistificação necessária nessa discussão. “Já existe idade mínima”, diz Sara.
Além dos auxílios (doença, maternidade, entre outros), pensão por morte e
benefícios acidentários e assistenciais, o Regime Geral da Previdência Social
engloba três modalidades de aposentadoria: por invalidez, idade e tempo de
contribuição.
Por definição, não cabe restrição de idade para as aposentadorias concedidas a
pessoas que, vitimadas por doenças ou acidente, tenham ficado impedidas de
trabalhar. A aposentadoria por idade já estabelece o mínimo de 60 anos para
mulheres e 65 para homens – nesse caso, o objetivo de uma nova reforma seria
jogar a aposentadoria mais para frente.
A modalidade por tempo de contribuição permite que o trabalhador se aposente em
qualquer idade, desde que contribua durante 30 anos, se for mulher, ou 35 anos
no caso dos homens. É nessa modalidade que poderia estar concentrado o
contingente de trabalhadores que conseguem o benefício aos 55 anos – média que
tem sido alardeada pelos governos como a idade em que os brasileiros se
aposentam. A partir de uma medida aprovada no ano passado, o trabalhador tem a
alternativa de se aposentar quando a soma do seu tempo de contribuição (30 ou
35) com a idade resultar em 85 ou 90 para mulheres e homens, respectivamente. A
cada dois anos, acrescenta-se um ponto nesse resultado final, de modo que, em
2026, a soma tenha que dar 90 e 100.
Além disso, mais uma vez, os números desmentem o argumento: dos 32 milhões de
benefícios garantidos pela previdência brasileira, apenas 5,4 milhões ou 16,6%
estão nessa modalidade.
O número é baixo por uma razão muito simples: com o alto grau de informalidade e
instabilidade do mercado de trabalho brasileiro, são poucas as pessoas que
conseguem ter vínculo empregatício que gere contribuição por 30 ou 35 anos
seguidos.
Isso significa que a maioria da população brasileira se aposenta com uma idade
muito maior do que aquela que é divulgada pelos defensores da reforma
previdenciária. Trata-se, mais uma vez, de uma ‘matemática’ particular: segundo
Romero, mesmo não fazendo o menor sentido estabelecer idade para aposentadoria
por invalidez ou pensão por morte, por exemplo, esses benefícios são
contabilizados pelo governo no cálculo que produz a média de 55 anos.
Velhice e desenvolvimento
Mas de pouco vale a desmistificação desses números diante da afirmação repetida
de que, com a mudança da pirâmide etária, o sistema da previdência vai entrar em
colapso em algumas décadas. “Não vai acontecer nada disso”, garante Denise
Gentil, completando: “O discurso demográfico do envelhecimento populacional é um
discurso do mercado financeiro”. Como economista, seu argumento é que não se
pode fazer previsões para o futuro sem levar em conta uma variável que as
análises “catastrofistas” dos governos sempre ignoram: a produtividade.
“Quando você vê as planilhas do ministério da previdência, todas as variáveis
estão projetadas para o futuro: massa salarial, massa de benefícios, inflação,
taxa de crescimento do PIB… Só não tem a produtividade”, descreve. E explica:
“Se tivesse esse cálculo, ficaria claro que, no futuro, embora existindo em
menor número, cada trabalhador vai produzir muito mais do que se produz hoje. E
que, portanto, essa capacidade produtiva maior vai gerar produto e renda no
montante suficiente para pagar os salários dos ativos e os benefícios dos
inativos”.
Diante de “uma produção gigantesca”, diz, a preocupação deve ser garantir um
mercado consumidor à altura. E é aqui que entram os aposentados. “O
envelhecimento da população brasileira não vai ser problema, mas solução”. Desde
que eles tenham a aposentadoria garantida, claro.
Aposentadoria no campo e salário mínimo
Outro ponto que tem sido apontado pelos ‘especialistas’ governamentais é a
necessidade de se mudarem as regras da aposentadoria dos trabalhadores rurais.
Hoje, a Constituição permite aos trabalhadores do campo se aposentarem cinco
anos antes dos urbanos, sem exigência do tempo mínimo de contribuição, recebendo
um salário mínimo.
Segundo Denise Gentil, as discussões da reforma vinham cogitando não só igualar
a idade de aposentadoria como condicioná-la à contribuição, ou seja, equiparar
com os critérios da previdência urbana. “Como se você tivesse condições de
comparar essas duas realidades, do trabalhador rural e urbano, neste país”,
contesta.
De fato, considerado apenas o fluxo de caixa entre a receita e a despesa
previdenciária, sem levar em conta os recursos da seguridade social como um
todo, o subsistema de previdência rural apresenta um déficit que, em 2015, foi
de R$ 90 bilhões.
Romero explica que, de um lado, esse desequilíbrio expressa o impacto de uma
medida muito positiva para os trabalhadores: a valorização do salário mínimo na
última década que, “obviamente deu uma valorizada muito grande no benefício
rural”.
Mas o problema, na sua avaliação, está na falta de contribuição de um setor
central da economia no campo: o agronegócio. Hoje, as empresas desse ramo são
isentas de contribuição previdenciária sobre o que é exportado e pagam uma
alíquota de 2,6% sobre a receita bruta da comercialização interna. Como regra
geral, os outros setores pagam 20% sobre a folha de pagamento.
“Isso tem sido contestado pela CNA [Confederação Nacional da Agricultura e
Pecuária do Brasil], pelo ministério da agricultura, mas eu acho que é chegada a
hora de o agronegócio, que tem sido tão incentivado, ser incentivado também a
contribuir um pouco mais para o equilíbrio das contas da previdência rural”,
analisa Romero. Essa foi uma das dez propostas formalmente entregues pelas
centrais sindicais que compuseram o GT ao governo interino.
Mas já há reação. Matéria do jornal O Estado de São Paulo no dia 23 de junho
informa que uma das “alternativas” consideradas pelo governo interino na
proposta de nova reforma da previdência é cobrar a contribuição do INSS das
empresas do agronegócio. Na reportagem, no entanto, Roberto Brant, ex-ministro
do governo Fernando Henrique, atual consultor da CNA e coordenador do programa
de Michel Temer para a área — tendo sido o principal cotado para o ministério da
previdência, caso ele não tivesse sido extinto — classificou essa medida como “nonsense”,
argumentando que a reforma precisa priorizar a redução das despesas e não o
aumento de receita.
E não foi só sobre a previdência rural que a valorização do salário mínimo
destacada por Romero teve impacto. Por isso mesmo, uma das medidas que vem sendo
anunciada desde o programa antecipado do governo interino é impedir que os
benefícios previdenciários e assistenciais continuem tendo reajustes que
acompanhem o salário mínimo.
Num texto que, entre outras coisas, ignora o sistema de financiamento da
seguridade social, que garante um caixa próprio, o programa do PMDB defende: “É
indispensável que se elimine a indexação de qualquer benefício do valor do
salário mínimo. (…) Os benefícios previdenciários dependem das finanças públicas
e não devem ter ganhos reais atrelados ao crescimento do PIB”.
Para Sara Granemann, inclusive, essa é a diferença substancial que se pode
destacar entre as propostas que circulavam no governo Dilma e as que se cogitam
agora, durante o governo interino. “Para Temer, há uma fúria de desvincular e
criar um outro índice, sem dizer qual. Se Dilma voltar, talvez não faça isso”,
arrisca, ressaltando, no entanto, que, embora nunca tenha aparecido como
proposta, no governo petista o impacto dessa indexação sempre era apresentado
como problema.
Para que tudo isso?
Para os especialistas ouvidos pela Poli, tudo isso aponta um claro processo de
privatização e financeirização da previdência brasileira, que traz muitos riscos
para os trabalhadores. Denise explica que o que se chama de previdência privada
é, na verdade, o investimento num fundo que aplica no mercado financeiro o
dinheiro pago pelos trabalhadores.
“Não é previdência, é investimento, com custo alto e retorno baixíssimo”,
denuncia Denise. Diferente da garantia que a previdência social oferece, aqui
pode-se ganhar ou perder. O caso do Postalis, fundo de pensão dos funcionários
dos Correios, é exemplar. Neste exato momento, o fundo acumula um rombo de quase
R$ 7 bilhões que, segundo análises publicadas na grande imprensa, se devem
principalmente a perdas em investimentos de risco, por exemplo, em títulos de
outros países e nas empresas de Eike Batista.
Uma solução proposta foi aumentar em 23 anos a contribuição de todos, inclusive
aqueles que já teriam direito ao benefício. Segundo matéria do jornal O Globo de
março deste ano, isso significaria inclusive uma redução de 18% no contracheque
dos já ‘aposentados’.
Segundo dados da Anfip, em fevereiro de 1997, o Brasil tinha 255 fundos de
pensão que movimentavam R$ 72 bilhões; em dezembro de 2015, são 308 fundos com
uma reserva de R$ 685 bilhões. Isso talvez explique por que, na avaliação de
Denise, a proposta de reforma da previdência nada tenha a ver com fluxo de
caixa: trata-se, na verdade, de um amplo acordo entre Estado e mercado
financeiro, que envolve o pagamento dos juros da dívida pública e o
fortalecimento dos fundos de pensão, que se tornaram um verdadeiro nicho de
mercado para o grande capital.
“Os governos começam a divulgar que a previdência está quebrada porque as
pessoas vão se sentir inseguras em usar o serviço público e vão correr para o
banco fechar um plano privado. Com esse discurso, o governo tem empurrado a
população para o colo dos bancos”, explica Denise, que alerta: “Você tem que se
perguntar a quem serve essa reforma”.
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