TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO
18/12/2009
Entrevista Ana Beatriz Barbosa Silva
"Eu me achava uma burra"
A psiquiatra conta como sofreu com o déficit de atenção
na infância e como aprendeu a conviver com o transtorno
que atinge 6% da população em idade escolar
Silvia Rogar
Oscar Cabral |
"No início da adolescência, bateu uma vontade enorme de mudar. Eu decidi ficar retraída, quieta, para não errar" |
A psiquiatra carioca Ana Beatriz Barbosa Silva, 43 anos, especializou-se em traduzir para uma linguagem acessível o universo misterioso dos transtornos mentais. Seu último livro, Mentes Perigosas, apresentou as muitas faces dos psicopatas e há 44 semanas faz parte da lista dos mais vendidos de VEJA. Ela já havia feito uma primeira incursão vitoriosa. Seu Mentes Inquietas, sobre o transtorno do déficit de atenção (TDA), vendeu 200 000 cópias e está sendo relançado. Nesta entrevista, Ana Beatriz fala de sua experiência, da importância do diagnóstico precoce e afirma que, embora não tenha cura, o transtorno permite uma vida normal e criativa.
Como a senhora descobriu que tem o
transtorno do déficit de atenção?
Eu já estava no 3º ano da faculdade de medicina. Tinha 19 anos. Fui a um
seminário em Chicago sobre depressão. Consegui errar tudo: cheguei um dia e uma
hora atrasada para a primeira aula. Como não apareci, minha inscrição foi
cancelada. A atendente da faculdade viu meu desespero e disse que eu poderia me
transferir para outro curso, com início naquele dia. O professor era John Ratey,
papa do déficit de atenção. Ele começou a detalhar o transtorno e pensei que
estivesse falando sobre mim. Chegou a ser incômodo. Quando a aula acabou, fui
atrás dele conversar sobre meu comportamento desde a infância. No dia seguinte
fiz um teste que revelou que eu tinha TDA em grau grave. Ele então me disse:
"Sobreviver, você já sobreviveu. Sabe se virar, frequenta uma boa faculdade. Mas
você mata um leão por dia". Comecei então o tratamento.
Foi um divisor de águas. Senti-me como um míope que põe o primeiro par de óculos
e percebe que o mundo é cheio de detalhes. Usei a medicação por cinco anos
consecutivos. Hoje, quando escrevo um livro, volto a tomá-la no último mês. É a
hora em que junto todas as informações e preciso ter mais senso crítico.
O que provoca o TDA?
A pessoa que tem o transtorno nasce com uma alteração no funcionamento
do lobo frontal. Essa seção do cérebro é um maestro do comportamento humano, uma
área em que se cruzam sistemas neurais ligados à razão. Entre outras ações,
regula a velocidade e a quantidade de pensamentos. No TDA, esse filtro funciona
com eficiência menor. O resultado é a hiperatividade mental e, consequentemente,
a perda de foco, de objetividade. Quem nasce com TDA não tem problema de
inteligência, mas de administrar o tempo, fixar a atenção, dar continuidade ao
que inicia. O transtorno é muito mais comum do que se imaginava. Segundo a
Associação de Psiquiatria Americana, 6% da população em idade escolar tem esse
padrão de funcionamento mental nos Estados Unidos. No Brasil, as pesquisas
apontam uma média próxima a essa.
O que provoca essa alteração do
funcionamento do cérebro?
É um transtorno químico, causado pela baixa de dois neurotrasmissores: a
dopamina e a noradrenalina. Essa alteração diminui a ação filtrante do lobo
frontal. A genética já mostrou ter papel importante, mas fatores externos acabam
interferindo na evolução do transtorno. Se não é cercada por uma organização
mínima, a pessoa pode ter sérios prejuízos em sua qualidade de vida.
Como o transtorno interferiu em sua trajetória pessoal?
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"Quem tem TDA presta muita atenção naquilo que desperta seu real interesse. Por isso, é injusto falar de déficit de atenção. O que existe é uma atenção instável" |
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Sempre achei que havia algo errado comigo. Na escola, tinha horror a ditado. Meu coração disparava: sabia que precisava prestar atenção ao que a professora dizia e, simultaneamente, observar se não estava cometendo erros ao escrever. Nessas horas, eu me sentia a criança mais burra da sala. Fora do colégio, também sofria. Uma vez meu pai, que é professor, corrigiu tanto meu diário que botei fogo nas páginas depois. Vivia com as pernas roxas de tanto cair e bater nos móveis. Meu armário era uma bagunça absurda. Tenho uma irmã cinco anos mais velha, centrada, organizada. Durante muito tempo, dei a ela parte da minha mesada para que arrumasse meu armário. Todas as vezes que minha mãe reclamava comigo, eu concordava, entendia que ela tinha razão. Mas eu não sabia como tudo isso acontecia. No início da adolescência, bateu uma vontade enorme de mudar. Eu era uma criança falante e me fechei. Fiquei retraída, quietinha, para não errar. Vivia no meu quarto, lendo. Isso foi dos 12 aos 16 anos. Na infância me chamavam de pinga-fogo, porque eu não parava. Na adolescência, quando me tranquei, virei Bia Sid (de sideral). Às vezes, achava que era burra. Por outro lado, sabia que tinha conhecimento e imaginação. Acabava o dia com dor de cabeça de tanto pensar. Era uma angústia.
Mas a senhora hoje é uma psiquiatra
bem-sucedida. Como conseguiu isso?
O diagnóstico foi libertador. Passei a me observar. Com a medicação, comecei a
fazer mais rápido o que antes demandava muito esforço. Foquei na psiquiatria. No
meu trabalho, nada me escapa hoje. Tenho um filme na cabeça sobre cada paciente.
Quem tem TDA presta uma atenção acima da média naquilo que desperta seu
interesse verdadeiro. É o que a gente chama de hiperfoco. Por isso, acho injusto
falar de déficit de atenção. O que existe é uma atenção instável.
O menino com TDA pode sofrer na escola, mas desenhar muito bem ou tocar piano de
ouvido, se essa for a sua paixão. Por isso, é fundamental que os pais descubram
os talentos do filho e o estimulem a fazer aquilo de que realmente gosta. Para
quem tem TDA, isso funciona como remédio.
Como sua família enfrentou o problema?
Minha mãe creditava meu comportamento a falhas do método pelo qual fui
alfabetizada. Meu pai achava que era preguiça. Mas eles eram compreensivos,
porque sabiam que eu não fazia nada de propósito e era honesta, sincera, assumia
os erros. Voei de bicicleta no carro do vizinho e meu pai pagou o conserto sem
reclamar. Quando eles buscaram um diagnóstico para meu comportamento, os médicos
disseram que eu tinha uma disritmia e me passaram um remédio. Devido à
sonolência que causou, parei logo de tomar essa medicação. Ainda bem.
Por natureza, as crianças costumam ser
agitadas e inquietas. Quando os pais devem desconfiar que o filho sofre do
transtorno?
Na infância, desatenção e impulsividade são normais. Mas, em geral, estão
relacionadas a algum motivo específico: porque a criança dormiu mal, está
preocupada com alguma coisa, apaixonou-se pela primeira vez. O que acontece é
que uma criança com TDA tem esse comportamento de maneira constante e mais
intensa. Ela já nasce com o cérebro funcionando dessa maneira e, antes dos 7
anos, é possível perceber isso. Na infância, existe uma profusão de sintomas – e
não são notas baixas. O lençol não para na cama porque a criança se mexe demais
durante a noite. Também pode falar dormindo. Os professores mandam recados
dizendo que aquele aluno é extremamente inteligente, mas isso não se traduz nas
avaliações. A criança também é excluída das brincadeiras na escola, porque tem
dificuldade de esperar a vez nos jogos em grupo e manter a atenção nas tarefas.
Olhar a agenda e os cadernos também ajuda muito: eles refletem a organização do
pensamento e como a criança anota as observações que professores fazem durante
as aulas. A condição fundamental para o diagnóstico de TDA é a hiperatividade
mental. Ninguém adquire TDA ao longo da vida. Quem tem o transtorno já nasceu
com esse tipo de funcionamento cerebral. É o histórico que leva ao diagnóstico
preciso.
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"Quando tive o diagnóstico e comecei o tratamento, eu me senti como um míope que põe o primeiro par de óculos e percebe que o mundo é cheio de detalhes" |
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Como foi sua vida escolar?
Nunca repeti ano. Conseguia passar nas provas finais ou na recuperação. Nessa
hora, meus pais assumiam uma função, digamos, mais executiva. Eles me ajudavam a
me organizar, e aí eu estudava como louca. Quando existe planejamento, vai tudo
bem com a pessoa que tem TDA.
O que a senhora aconselha a quem descobre
que o filho tem TDA?
A primeira coisa é ver o grau de sofrimento dessa criança, o nível de
desconforto. É preciso ir à escola conversar com professores, ouvir a babá. A
partir daí, dar oportunidade à própria criança para que ajude no tratamento,
participe. Tenho um paciente que enlouquecia a família. Depois de usar medicação
por dois anos e ter uma melhora estupenda, ele disse: "Já tenho noção de como é
meu cérebro funcionando da maneira que tem de ser e queria parar de tomar o
remédio, tentar do meu jeitinho". Ele ganhou uma percepção de seu comportamento.
Outra coisa que os pais devem entender é que ser justo em questão educacional
não é tratar os filhos todos da mesma maneira. Eles têm de ver o que cada um
precisa. No caso do TDA, é fundamental dar ênfase à disciplina. Inclusive com a
mesada. Como ele tende a gastar tudo de uma vez, o dinheiro tem de ser liberado
aos poucos, para criar um limite e cumpri-lo. Com meus pacientes, por exemplo,
costumo assinar um contrato toda vez que quero alguma coisa. Sempre funciona.
A senhora conta a seus pacientes no consultório que tem TDA?
Sim, e principalmente as crianças ficam muito aliviadas. Outro dia atendi um
paciente que batia a cabeça na parede. A mãe pensou que o filho estivesse louco.
E eu disse a ele: "É para tentar parar o excesso de pensamento, né? A cabeça
pesa mesmo, mas não é assim que vai melhorar". Ele ficou impressionado porque eu
entendia exatamente o que ele estava sentindo. No livro, publiquei experiências
minhas com nomes trocados. Como as da estudante de fonoaudiologia que achava que
tinha alguma falha de caráter porque se distraía nas aulas, pegava cadernos
emprestados com amigas, tirava notas boas e se achava uma fraude.
Quais são as tendências mais modernas no
tratamento do transtorno?
Antes, só existia o metilfenidato (a Ritalina). Mas 15% dos pacientes não
respondem bem a ele. É uma substância que surte efeito quando a desorganização e
a falta de foco são os fatores que mais atrapalham a vida. Ao longo desta
década, a bupropiona, substância usada no tratamento para parar de fumar,
mostrou-se muito eficiente também para TDA. A atomoxetina, um tipo de
antidepressivo, também passou a ser usada – principalmente nos casos em que
depressão e ansiedade se manifestam junto. Costumo dizer que a melhor medicação
é a eficaz com a menor dose. Mesmo no tratamento de adultos, começo com dose de
criança. E avalio o tratamento complementar necessário. A terapia
cognitivo-comportamental tem-se mostrado muito eficaz.
Existe prescrição exagerada de medicamentos hoje?
Sim. Não se deve prescrever remédio de TDA em um momento de desatenção ou para aumentar a concentração no ano de vestibular, por exemplo. O excesso de informação pode levar o cérebro à exaustão, e a pessoa fica sujeita a distrações, falhas de memória. Mas isso é fruto de uma sobrecarga circunstancial. Quando acaba, os sintomas desaparecem. O que acontece é que, por desinformação, alguns pais solicitam a medicação antes de uma investigação cuidadosa sobre o funcionamento mental do filho. Em quem não tem TDA, o remédio cria um efeito falso, dá apenas vigor numa situação de cansaço extremo.
TDA tem cura?
Não tem cura, mas há grandes chances de um final feliz. No momento em que você
entende sua engrenagem, passa a dominá-la em vez de ser dominado por ela. Aí
pode até levar vantagens. O excesso de pensamento – que causa exaustão,
desorganização e esquecimento – também traz ideias. Existem ideias boas e más. O
grande aliado de quem sofre de TDA é um caderninho. Em qualquer lugar, eu anoto
pensamentos que já deram origem a capítulos de livros. Mesmo para ideias sem
sentido, é vital ter organização. Dali pode sair algo realmente inovador."
<Veja, Edição 2132, 30 de setembro de 2009>