TRAFICANTES EVANGÉLICOS
ATACAM TERREIRO DE UMBANDA
11 de agosto de 2019
Traficantes evangélicos
causam terror a religiões africanas
Conversão de cúpula de facção criminosa à religião evangélica cria vertente
inédita e aumenta ataques contra religiões de matrizes africanas
Roberta Jansen
18 ago 2019
Os registros de intolerância religiosa são comuns Brasil afora, mas no Rio têm
uma característica particular: passaram a envolver traficantes e evangélicos.
Após ataques a terreiros de umbanda e candomblé na Baixada Fluminense, a polícia
identificou o mandante e, na semana passada, prendeu oito traficantes acusados
de integrar seu grupo, o chamado Bonde de Jesus.
Segundo a polícia, o mandante é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, do
Terceiro Comando Puro (TCP), um dos criadores do Bonde de Jesus, vertente
inédita da intolerância religiosa no Estado. Estima-se que existam hoje 200
terreiros sob ameaça. Os casos são investigados pela Delegacia de Crimes Raciais
e Delitos de Intolerância (Decradi), criada em 2018.
Investigações apontam que a peculiar relação entre religiosos e criminosos
aconteceu depois que a cúpula do TCP foi convertida por
uma igreja neopentecostal. Há informações, ainda não confirmadas, de
que Peixão teria sido ordenado pastor. Trata-se de uma característica específica
dessa facção, não sendo reproduzida nem pelos demais grupos de traficantes nem
por milicianos.
"A situação de intolerância sempre existiu, mas tivemos uma piora quando
indivíduos ligados à cúpula de uma facção resolveram se converter", afirma o
delegado da Decradi, Gilbert Stivanello. "Eles distorcem a doutrina religiosa e
agridem outras religiões, sobretudo as de matriz africana." As principais
lideranças evangélicas do Rio condenam os ataques.
Conversão. Um dos primeiros a se converter foi Fernando Gomes de Freitas, o
Fernandinho Guarabu, há cerca de quatro anos. Ele era o chefe do tráfico no
Morro do Dendê, Ilha do Governador, até ser morto pela polícia em junho. Outros,
como Peixão, se converteram depois.
"Alguns deles se converteram dentro do presídio", diz Stivanello. "Eles viveram
uma experiência distorcida da conversão, se tornando 'bandido
de Jesus', como se isso fosse um ato de fé. Se pararmos para pensar,
não é muito diferente do terrorismo islâmico. É difícil mesmo entender a
lógica", afirma.
Coordenadora do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro Brasileira,
Célia Gonçalves Souza diz que o problema da intolerância é nacional, mas que, de
fato, vem ganhando contornos específicos no Rio, sobretudo pela penetração de
evangélicos no sistema carcerário. "No Rio, esse problema é muito escancarado e
o narcopentecostalismo só tende a crescer. E passa pela questão das
penitenciárias, onde há uma entrada muito grande dos neopentecostais."
Na Baixada Fluminense, traficantes passaram a ditar regras dos terreiros, como
horários das cerimônias e uso de fogos de artifício e fogueiras. Eles também
proíbem as pessoas de andarem com roupas brancas ou de santo nas ruas. As
invasões a terreiros são cada vez mais frequentes, com destruição de oferendas e
imagens sagradas.
Há uma semana, o terreiro Ilê Axé de Bate Folha, em Duque de Caxias, foi
invadido por traficantes - no 10.º caso da região. Eles quebraram todas as
imagens e oferendas e ameaçaram de morte a mãe de santo, que está fora do
Estado, na casa de parentes.
"O ataque aconteceu num sábado de casa cheia. Eles entraram com violência,
mandando todo mundo sair e quebrando tudo", contou uma testemunha. "O terreiro
está fechado. Tiramos tudo de lá e não aconselhamos ninguém a voltar." Segundo a
mesma testemunha, outros religiosos fecharam os terreiros e se mudaram.
"Qualquer ataque com contornos de destruição do sagrado tem caráter de racismo
religioso", diz a defensora Livia Cásseres, do núcleo contra a desigualdade
racial da Defensoria Pública. "À violência que já existe contra essas religiões
- que têm uma série de direitos negados -, se soma agora a do varejo de drogas.
Mas a violência contra elas é permanente desde a época colonial." Por isso, para
Livia, a solução passa por diferentes esferas.
Alerta. A gravidade da situação fez com que, em julho, fosse realizada uma
reunião com membros da umbanda e do candomblé, lideranças evangélicas, e
representantes da Polícia Civil, do Ministério Público e da Defensoria Pública.
O pastor Marcos Amaral, da Comissão Contra a Intolerância Religiosa, destaca que
a denominação "evangélicos" abrange um segmento grande de religiosos, com
posicionamentos diferenciados. Já o pastor Neil Barreto, da Igreja Batista
Betânia, afirma que "a intolerância é o ápice da ignorância". "E a única solução
para a ignorância que produz intolerância é a educação. Precisamos de uma
campanha de educação e conscientização em todas as comunidades de fé."
Não tem como pensar em intolerância sem pensar em racismo, diz babalaô premiado
nos EUA
O babalaô Ivanir dos Santos recebeu no mês passado, em Washington, o Prêmio
Internacional de Liberdade Religiosa entregue pelo Departamento de Estado dos
Estados Unidos. Santos é coordenador da Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa e organizador da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que é
realizada há 12 anos, em Copacabana, no Rio.
1. Como foi receber esse prêmio internacional em um momento em que aumentam os
ataques a terreiros, em especial no Rio?
Esse prêmio, na verdade, vem reconhecer e legitimar a luta pela causa da
liberdade religiosa, contra o racismo, de respeito aos direitos humanos. Estamos
passando por um momento muito difícil. E não tem como pensar em intolerância sem
pensar em racismo e preconceito contra grupos minoritários.
2. As religiões de matriz africana sempre foram alvo de preconceito. O que mudou
agora?
Sim, secularmente, elas sempre foram perseguidas: na Colônia e no Império, pela
Igreja Católica; na República, pelo Estado; e nos últimos 30 anos, por grupos
neopentecostais e, mais recentemente, por traficantes evangelizados. São
traficantes que se dizem evangélicos.
3. Existe uma vertente racista nesse preconceito?
Sim. No Brasil temos um preconceito disseminado na sociedade, virou um
comportamento social baseado, fundamentalmente, no racismo. As tradições de
origem africana sofrem preconceito. O mesmo pensamento se reflete também no
samba, na capoeira, na congada. Manifestações culturais de identidade africana
são frequentemente relacionadas ao demônio.
No meu modo de ver, não
difícil entender a lógica desses bandidos de fé. Essas barbaridades
perpetradas, não só por evangélicos bandidos, mas também por evangélicos não
pertencentes a organizações criminosas, podem até conter racismo, mas têm seu
cerne no pensamento monoteísta sanguinário que os cristãos
herdaram dos judeus. Conforme o conjunto de preceito que têm como
procedente de Yavé, a ordem era matar os adorados de
outros deuses. Embora a arqueologia mostre serem lendas as
histórias patriarcais, o rei Yoshiahu (Josias no Português atual), que mandou
criar esses livros sagrados, mandou matar as pessoas que
ofereciam sacrifícios aos deuses dos outros povos e queimá-los sobre os altares.
Embora os evangelhos do Cristianismo não tenham repetido a ordem para matar quem
não adorasse exclusivamente seu deus, bastou a Igreja ter poder político, para
instituir o maior horror da história. Assim, não é difícil entender por
que evangélicos destroem terreiros, que eles têm como coisas de Satanás, e
também imagens de igrejas católicas quando conseguem. Se eles
conseguirem poder, com certeza irão tornar legal matar quem não segue os
pensamentos deles.