VIOLÊNCIA JUDICIÁRIA CONTRA VÍTIMA DE
ESTUPRO
Isabela Del Monde
OPINIÃO
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da
interpretação de fatos e dados.
Juíza de SC afasta menina estuprada de sua mãe para impedir aborto legal.
A juíza Joana Ribeiro Zimmer, que negou aborto à menina de 11 anos vítima de
estupro Imagem: Reprodução/AMC
Isabela Del Monde
https://www.uol.com.br/universa/colunas/isabela-del-monde/
Isabela Del Monde é feminista e advogada. Coordenadora do movimento MeToo
Brasil, cofundadora da Rede Feminista de Juristas (deFEMde) e sócia da Gema -
Consultoria em Equidade
Colunista do UOL
21/06/2022 04h00
A Justiça de Santa Catarina protagoniza mais um caso chocante de violência
institucional. Uma menina da cidade de Tijucas foi estuprada aos 10 anos e, da
violência, resultou-se uma gravidez obviamente indesejada. Ao buscar o aborto
legal no Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina, a
vítima teve o serviço negado, pois o hospital alegou que
apenas realiza abortos permitidos em lei até a 20ª semana de gestação.
Acima disso, o hospital exige que a gestante apresente uma decisão judicial. A
vítima estava com uma gestação de 22 semanas.
É importante, já de partida, elucidar que esse entendimento do hospital é
discricionário, ou seja, é uma política interna sem qualquer apoio legal,
uma vez que o Código Penal brasileiro, única lei que trata de aborto no país,
não menciona qualquer prazo da gestação para interromper uma gravidez
legalmente.
Diante, então, da primeira violação ao seu direito ao aborto legal, já que a lei
permite que a gestação advinda de um estupro pode ser encerrada e que toda
relação sexual com alguém menor de 14 anos é estupro, a vítima e sua mãe
recorreram ao Judiciário para que obtivessem a autorização exigida pelo
hospital. Mais uma vez, uma demanda ilegal, já que nenhum aborto permitido no
Brasil requer, por lei, autorização judicial para que seja realizado.
Depois disso, não contente em negar a realização do aborto, perguntando para a
vítima se ela suportaria "ficar mais um pouquinho",
a juíza do caso, Joana Ribeiro Zimmer,
determinou que a garota fosse removida de sua casa e dos cuidados de sua mãe,
confinando-a em um abrigo público. O vídeo dessa audiência está público graças à
parceria do Portal Catarinas e do The Intercept Brasil, que deram publicidade a
essa sequência de ilegalidades.
A falta de sensibilidade dessa decisão está me consumindo. Como
uma juíza afasta uma criança de 11 anos, vítima de estupro
e grávida, atualmente de 29 semanas, da sua mãe? A magistrada
primeiro alegou que colocou a vítima em um abrigo para
protegê-la de novas violências sexuais. Uma decisão sem qualquer sentido
lógico e humano, já quem deveria ser afastado de qualquer convívio é quem
estupra, nunca quem é estuprada.
A mãe da vítima, desesperada, pediu para que sua filha voltasse para casa porque
ela não está entendendo nada e está muito triste sem a mãe. A
juíza negou o
pedido e deu uma segunda motivação para manter a criança longe de sua
rede de amor em um abrigo: evitar que o aborto fosse feito.
Tanto a vítima como a sua mãe expressaram de todas as formas possíveis que
querem o aborto e estão sendo obrigadas a enfrentarem uma
série de humilhações e riscos de vida simplesmente porque uma juíza e uma
promotora decidiram que não precisam cumprir a lei.
A juíza, inclusive, trata o estuprador pela palavra "pai" e induz, de diversas
formas, a vítima a mudar de ideia, especialmente quando se refere ao feto por
expressões como "bebezinho" e "seu
filhinho".
Sabe quem é uma bebezinha, uma filhinha? A vítima! Uma
menina de 11 anos não pode ser obrigada, por nada nem por ninguém, a correr
elevados riscos de vida para levar adiante uma
gestação fruto de um estupro com a conversa mole de que, quando nascer, o bebê
vai para adoção.
A juíza disse que há milhares de famílias que querem adotar um bebê, que basta
então a menina esperar, como se ela estivesse produzindo
um objeto que leva algumas semanas para terminar de ficar pronto. Quando
dizemos que há pessoas que veem as meninas e mulheres
vulneráveis como máquinas de reproduzir, é disso que estamos falando.
Pouco importa como a gestação aconteceu e menos ainda importa a vontade da
vítima em não se expor a risco. O que importa são as famílias que querem um
bebê. Apenas geste-o e cale a boca.
Infelizmente, o sistema de Justiça brasileiro pode ser antimulheres e
antimeninas, inclusive contando com o apoio de mulheres para jogar contra, como
no caso em questão.
Para que não restem dúvidas: o aborto legal no Brasil (para gestação causada
por estupro e/ou que coloca em risco a vida da mãe e/ou de feto anencéfalo) pode
ser realizado a qualquer momento da gestação, sem necessidade de boletim
de ocorrência ou autorização judicial. Se te pedirem isso, saiba que é um
pedido ilegal e busque outro hospital de referência em sua região ou em outros
estados. Em São Paulo, esse hospital é o Pérola Byington.
Minha solidariedade à vítima e à sua mãe. Desejo que a publicidade do caso
seja o começo do fim dessa injusta violência a qual estão sendo submetidas.
<https://www.uol.com.br/universa/colunas/isabela-del-monde/2022/06/21/hospital-de-sc-errou-ao-negar-aborto-a-menina-de-11-anos-que-sofreu-estupro.htm>
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