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O LEGADO DA DITADURA DOS GENERAIS: FRACASSO E ATROCIDADES
(24/03/2009)
Celso Lungaretti (*)
Ao completarem-se 45 anos da quebra da normalidade institucional no Brasil,
mergulhando o País nas trevas e barbárie durante duas décadas, é oportuno
evocarmos o que realmente foi essa nada branda ditadura de 1964/85, defendida
hoje com tamanha desfaçatez pelos jornalões, seus editorialistas e articulistas.
Como frisou a bela canção de Milton Nascimento e Fernando Brant,
cabe a nós,
sobreviventes do pesadelo, o papel de sentinelas do corpo e do sacrifício dos
nossos irmãos que já se foram, assegurando-nos de que a memória não morra – mas,
pelo contrário, sirva de vacina contra novos surtos da infestação virulenta do
totalitarismo.
Nessa efeméride negativa, o primeiro ponto a destacar é que a quartelada de 1964
foi o coroamento de uma longa série de articulações e tentativas golpistas, nada
tendo de espontâneo nem sendo decorrente de situações conjunturais; estas foram
apenas pretextos, não causa.
Há controvérsias sobre se a articulação da UDN com setores das Forças Armadas
para derrubar o presidente Getúlio em 1954 desembocaria numa ditadura, caso o
suicídio e a carta de Vargas não tivessem virado o jogo. Mas, é incontestável
que a ultra-direita vinha há muito tempo tentando usurpar o poder.
Em novembro/1955, uma conspiração de políticos udenistas e militares extremistas
tentou contestar o triunfo eleitoral de Juscelino Kubitscheck, mas foi derrotada
graças, principalmente, à posição legalista que Teixeira Lott, o ministro da
Guerra, assumiu. Um dos golpistas presos: o então tenente-coronel Golbery do
Couto e Silva, que viria a ser o formulador da doutrina de Segurança Nacional e
eminência parda do ditador Geisel.
Em fevereiro de 1956, duas semanas após a posse de JK, os militares já se
insubordinavam contra o governo constitucional, na revolta de Jacareacanga.
Os oficiais da FAB repetiram a dose em outubro de 1959, com a também fracassada
revolta de Aragarças.
E, em agosto de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, as Forças Armadas
vetaram a posse do vice-presidente João Goulart e iniciaram, juntamente com os
conspiradores civis, a constituição de um governo ilegítimo, só voltando atrás
diante da resistência do governador Leonel Brizola (RS) e do apoio por ele
recebido do comandante do III Exército, gerando a ameaça de uma guerra civil.
Apesar das bravatas de Luiz Carlos Prestes e dos chamados grupos dos 11
brizolistas, inexistia em 1964 uma possibilidade real de revolução socialista.
Não houve o alegado "contragolpe preventivo", mas, pura e simplesmente, um golpe
para usurpação do poder, meticulosamente tramado e executado com apoio dos EUA.
Derrubou-se um governo democraticamente constituído, fechou-se o Congresso
Nacional, cassaram-se mandatos legítimos, extinguiram-se entidades da sociedade
civil, prenderam-se e barbarizaram-se cidadãos.
A esquerda só voltou para valer às ruas em 1968, mas as manifestações de massa
foram respondidas com o uso cada vez mais brutal da força, por parte de
instâncias da ditadura e dos efetivos paramilitares que atuavam sem freios de
nenhuma espécie, promovendo atentados e intimidações.
Até que, com a edição do dantesco AI-5 (que fez do Legislativo e o Judiciário
Poderes-fantoches do Executivo, suprimindo os mais elementares direitos dos
cidadãos), em dezembro de 1968, a resistência pacífica se tornou inviável. Foi
quando a vanguarda armada, insignificante até então, ascendeu ao primeiro plano,
acolhendo os militantes que antes se dedicavam aos movimentos de massa.
As organizações guerrilheiras conseguiram surpreender a ditadura no 1º semestre
de 1969, mas já no 2º semestre as Forças Armadas começaram a levar vantagem no
plano militar, introduzindo novos métodos repressivos e maximizando a prática da
tortura, a partir de lições recebidas de oficiais estadunidenses.
Em 1970 os militares assumiram a dianteira também no plano político,
aproveitando o boom econômico e a euforia da conquista do tricampeonato mundial
de futebol, que lhes trouxeram o apoio da classe média.
Nos anos seguintes, com a guerrilha nos estertores, as Forças Armadas partiram
para o extermínio premeditado dos militantes, que, mesmo quando capturados com
vida, eram friamente executados.
A Casa da Morte de Petrópolis (RJ) e o assassinato sistemáticos dos combatentes
do Araguaia estão entre as páginas mais vergonhosas da História brasileira – daí
a obstinação dos carrascos envergonhados em darem sumiço nos restos mortais de
suas vítimas, acrescentando ao genocídio a ocultação de cadáveres.
O milagre brasileiro, fruto da reorganização econômica empreendida pelos
ministros Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, bem como de uma enxurrada
de investimentos estadunidenses em 1970 (quando aqui entraram tantos dólares
quanto nos 10 anos anteriores somados), teve vida curta e em 1974 a maré já
virou, ficando muitas contas para as gerações seguintes pagarem.
As ciências, as artes e o pensamento eram cerceados por meio de censura,
perseguições policiais e administrativas, pressões políticas e econômicas, bem
como dos atentados e espancamentos praticados pelos grupos paramilitares
consentidos pela ditadura.
Corrupção, havia tanta quanto agora, mas a imprensa era impedida de noticiar o
que acontecia, p. ex., nos projetos faraônicos como a Transamazônica,
Ferrovia
do Aço, Itaipu e Paulipetro (muitos dos quais malograram).
A arrogância e impunidade com que agiam as forças de segurança causou muitas
vítimas inocentes, como o motorista baleado em 1969 apenas por estar passando em
alta velocidade diante de um quartel, na madrugada paulistana (o comandante da
unidade ainda elogiou o recruta assassino, por ter cumprido fielmente as ordens
recebidas!).
Longe de garantirem a segurança da população, os integrantes dos efetivos
policiais chegavam até a acumpliciar-se com traficantes, executando seus rivais
a pretexto de justiçar bandidos (Esquadrões da Morte).
O aparato repressivo criado para combater a guerrilha propiciava a seus
integrantes uma situação privilegiadíssima. Não só recebiam de empresários
direitistas vultosas recompensas por cada "subversivo" preso ou morto, como
se
apossavam de tudo que encontravam de valor com os resistentes. Acostumaram-se a
um padrão de vida muito superior ao que sua remuneração normal lhes
proporcionaria.
Daí terem resistido encarniçadamente à disposição do ditador Geisel, de
desmontar essa engrenagem de terrorismo de estado, no momento em que ela se
tornou desnecessária. Mataram pessoas inofensivas como Vladimir Herzog,
promoveram atentados contra pessoas e instituições (inclusive o do Riocentro,
que, se não tivesse falhado, provocaria um morticínio em larga escala) e
chegaram a conspirar contra o próprio Geisel, que foi obrigado a destituir
sucessivamente o comandante do II Exército e o ministro do Exército.
A ditadura terminou melancolicamente em 1985, com a economia marcando passo e os
cidadãos cada vez mais avessos ao autoritarismo sufocante. Seu último espasmo
foi frustrar a vontade popular, negando aos brasileiros o direito de elegerem
livremente o presidente da República, ao conseguir evitar a aprovação da emenda
das diretas-já.
* Jornalista, escritor e ex-preso político, mantém os blogs
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/-
Um outro mundo é possível. um outro brasil é necessário!
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