IGREJA CATÓLICA ROMANA A ALA DOMINANTE DO CRISTIANISMO
"Vaticano uma biografia não autorizada
Nenhuma história diz tanto sobre os últimos 2.000 anos
deste planeta quanto a da Igreja. Pelos corredores do
Vaticano passaram reis, guerras, o melhor da arte e até
alguns santos
Texto José Francisco Botelho
Era 11 de fevereiro de 1929 e faltava meia hora para o
meio-dia quando um Cadillac preto estacionou na frente
do Palácio de Latrão, em Roma. As portas do carro se
abriram e o homem mais temido da Itália saiu. Era Benito
Mussolini, chefe do regime fascista que governava o
país. Dentro do palácio – o quartel-general da Cúria
Romana, rosto administrativo da Igreja Católica – o papa
Pio 11 e seus funcionários mais gabaritados receberam o
ditador com apertos de mão. A conversa teve início e
Mussolini logo exibiu suas cartas: queria que a Igreja
reconhecesse oficialmente o regime – era uma tentativa
de neutralizar o adversário Partido Popular. A Igreja
também foi clara ao falar de seus objetivos. Pediu o que
havia perdido, no século 19, durante o processo de
unificação italiana: um Estado soberano. Por volta da 1
da tarde, Mussolini assinou o Tratado de Latrão, que
conferia ao papa um território independente dentro de
Roma. Em troca, a Igreja reconhecia como legítimo o
governo controlado pelo duce.
A rigor, foi nesse dia de inverno, na soturna companhia
de um dos mais violentos tiranos do século 20, que
nasceu o Estado do Vaticano como ele é hoje: o menor
país independente do mundo e a última monarquia
absolutista da Europa. Mas o encontro em Latrão foi
resultado de uma história muito mais longa, que se
enraíza 2.000 anos no passado – desde um tempo em que o
papa era apenas o bispo de Roma, uma entre muitas
lideranças de uma seita perseguida. Em seu auge,
pontífices se declaravam os “senhores do mundo” e
desencadeavam guerras com um sinal-da-cruz. Hoje, o
papado é a mais longeva organização internacional da
história. De onde veio, e onde foi parar, tanto poder?
Para desvendar essa história é preciso retornar às
origens do cristianismo, quando Roma virou centro de uma
seita judaica nascida nas areias do Oriente Médio.
A primeira Igreja
Certo dia, Jesus passeava pela Judéia, uma das
províncias mais pobres do Império Romano – que se
estendia da atual Inglaterra ao Iraque. De repente, o
Messias olhou para um de seus apóstolos, o pescador
Simão, também conhecido como Pedro. E disse: “Tu és
Pedro e sobre essa pedra edificarei minha Igreja. Eu te
darei as chaves do reino do céu, e o que ligares na
Terra será ligado nos céus”. Para o dogma católico, essa
passagem do Evangelho de São Mateus significa que Pedro
foi escolhido como representante de Cristo na Terra. O
primeiro papa.
No início, o cristianismo era uma seita de judeus para
judeus. Tanto é verdade que, após a crucificação de
Cristo, os apóstolos se mantiveram pregando em
Jerusalém. A idéia de que Jesus era o tão aguardado
Messias, porém, não pegou entre os judeus. Pelo
contrário: os apóstolos foram tão hostilizados que se
viram obrigados a se espalhar pelo Oriente Médio e
pregar para novos ouvidos. Foi assim que o Messias
passou a ser descrito como redentor de todos os homens e
de todas as raças. O discurso colou. Comunidades
chamadas igrejas – do latim ecclesia, assembléia –
pipocaram em cidades da Ásia, África e Europa. E logo
chegaram ao centro político de então – a tradição
católica assegura que Pedro viajou a Roma por volta do
ano 42. A vida na capital não era fácil: os cristãos
eram perseguidos por se recusar a adorar deuses romanos.
O próprio Pedro foi preso e levado ao Circo de Nero, uma
arena usada para corridas de carruagens e execuções de
traidores construída num terreno pantanoso nos subúrbios
de Roma. A região era conhecida como Vaticanus, provável
derivação de Vaticus, antiga aldeia etrusca que existia
lá. Nesse lugar misterioso e algo sinistro, Pedro foi
crucificado e enterrado. Mas, precavido que era, ele já
havia escolhido um sucessor, Lino, romano convertido ao
cristianismo sobre o qual quase nada se sabe além do
nome. E assim a autoridade de Pedro foi transmitida,
como continuaria sendo de geração em geração e de bispo
em bispo, até chegar a Bento 16, o 2670 herdeiro de são
Pedro – ou 2650, como prefere a Igreja, que riscou de
sua lista Estêvão, que morreu apenas 3 dias após ser
eleito, e Cristóvão, que tomou o poder à força.
Está aí, em resumo, a tese do “primado de Roma”, segundo
a qual os bispos romanos são os representante legítimos
de Jesus. Mas os fatos que sustentam esse dogma nunca
foram unanimidade. Não há provas da passagem de Pedro
por Roma. A Bíblia nada diz a respeito – lendas sobre
sua viagem e martírio foram coletadas por volta de 312 d.C., na obra de um propagandista da Igreja,
Eusébio de Cesaréia. Comprovar essa tradição sempre foi questão de
honra para os papas. Na década de 1930, por exemplo,
escavações financiadas pelo Vaticano encontraram um
antigo túmulo sob o altar da Basílica de São Pedro –
que, de acordo com a tradição, foi erguida sobre a
sepultura do apóstolo. Junto aos ossos, os arqueólogos
acharam símbolos cristãos, como peixes e cruzes. A
descoberta não convenceu todos os especialistas. “Havia
cemitérios no Vaticano muito antes de Cristo. O túmulo
na basílica talvez nem seja cristão – os romanos pagãos
costumavam usar símbolos de todas as religiões”, diz o
historiador André Chevitarese, da UFRJ, um dos maiores
especialistas brasileiros no assunto.
Como a maioria de seus companheiros, Chevitarese também
duvida que Pedro fosse um líder absoluto. “O
cristianismo antigo não tinha hierarquia rígida. Havia
bispos independentes, com opiniões diversas sobre
doutrina e fé.” Essa fase “democrática” chegou ao fim em
312, quando o imperador Constantino se converteu – e a
religião perseguida passou a ser a favorita do Estado.
Foi a partir daí que a Igreja se tornou hierárquica.
Doações feitas pelos imperadores a enriqueceram – a
instituição do celibato foi feita nessa época, para
impedir que a fortuna evaporasse entre herdeiros. A
proximidade do poder logo subiu à cabeça do bispo romano
– que, até então, não era mais nem menos respeitado que
líderes de outras comunidades. No final do século 4, os
bispos de Roma adotaram o título de papa, “pai”, em
grego, sinal de que se consideravam chefes dos outros.
Uma espécie de réplica espiritual do imperador.
Trapaça na Idade Média
Na penumbra da sala, um homem escreve sua obra-prima.
Ele usa uma pena, tinta preta e folhas de papiro ou
pergaminho. Não há certeza quanto à data, algo em torno
do ano 750. Um endereço provável é o Palácio de Latrão.
O autor seria um certo Cristóforus, secretário do papa
Estêvão 20. Certeza mesmo, só em relação à obra: é a
Doação de Constantino, a fraude mais bem-sucedida da
história.
Para entender o sentido do documento, temos de voltar no
tempo. Ao longo do século 5, a parte ocidental do
Império Romano foi invadida e devastada por tribos
bárbaras. Em 476, Roma foi conquistada. Na confusão da
guerra, o papado foi a única instituição organizada que
sobreviveu – o papa Leão Magno entrou para o rol dos
gênios da diplomacia por ter liderado o Vaticano nessa
transição. Quando o rebuliço acabou, a Igreja era dona
do mais poderoso dos monopólios: o conhecimento.
Religiosos cristãos eram os únicos europeus letrados no
início da Idade Média. Fornecendo conselheiros e
legisladores para os reinos nascentes, a Igreja ganhou
influência sobre os soberanos bárbaros, que começaram a
se converter em 508 – o primeiro foi Clóvis, rei dos
francos, que mandou batizar seus exércitos com tonéis de
água benta.
O autor da Doação de Constantino provavelmente pertencia
a uma classe especial de clérigos eruditos: as equipes
de falsários que, entre os séculos 6 e 9, trabalhavam
nos escritórios papais alterando e inventando documentos
para fortalecer a posição dos bispos romanos. A Doação
era uma mistura de testemunho e testamento, supostamente
assinado pelo imperador Constantino em 315. O texto
conta como o imperador foi milagrosamente curado da
lepra graças às preces do papa Silvestre. Em troca,
transformou os papas em seus herdeiros legais: “A eles
deixo a coroa imperial e o governo de todas as regiões
do Ocidente, de agora para sempre”.
Ao longo da Idade Média, a Doação foi aceita como
documento verídico e invocada por nada menos que 10
papas para reivindicar poderes políticos. Muitos
historiadores acreditam que a fraude foi usada pela
primeira vez em 754. Nesse ano, Estêvão 20 viajou para
encontrar Pepino, rei dos francos. Estêvão procurava
ajuda para transformar Roma e as terras vizinhas em
território da Igreja – nos dois séculos anteriores, a
capital da cristandade havia sido saqueada e dominada
por hérulos, godos, bizantinos e lombardos. Pepino, que
havia tomado o trono à força, tentava legitimar seu
poder. “A Doação foi apresentada pessoalmente por Estêvão a Pepino. O rei franco aceitou o documento como
prova da autoridade dos papas – na sociedade iletrada da
época, registros escritos despertavam respeito”, escreve
o historiador americano Norman Cantor em The
Civilization of the Middle Ages (“A Civilização da Idade
Média”, sem tradução em português). Pode parecer
estranho, mas os invasores tinham uma admiração
supersticiosa por seu antigo inimigo, o Império Romano.
Os reis bárbaros sonhavam em igualar os antigos
imperadores – e Constantino era um dos mais famosos.
Depois de ter a coroa consagrada por Estêvão, Pepino
partiu para a Itália. Expulsou os lombardos, que
dominavam o país na época, e converteu um pedaço da
Itália central em território independente, da Igreja. O
coração do novo reino era a cidade de Roma e a área
vizinha, que hoje forma o Vaticano. Todos os habitantes
dessas regiões viraram súditos dos papas, passaram a
lhes pagar impostos, a ser julgados e governados por
eles. Assim nasceu o Estado Pontifício, que durou até
1870 (veja quadro à pág 64).
Donos do mundo
Na virada do ano 1000, a Europa estava de joelhos. Pela
espada dos reis católicos e pelas viagens de
missionários, o cristianismo tinha unificado o
caleidoscópio cultural do Ocidente numa grande nação
espiritual. Na Ásia, porém, a autoridade do papa não era
reconhecida. O patriarca de Constantinopla, atual
Istambul, considerava-se tão importante quanto seu
colega italiano. E ainda havia discordâncias em certos
aspectos da liturgia romana, como o celibato e a missa
em latim. A rixa explodiu em 1054, quando
o papa Leão 90
e o patriarca Cerulário excomungaram um ao outro e
romperam relações. Os orientais formaram a Igreja
Ortodoxa, enquanto a Igreja Romana se declarou a única,
eterna e católica – do grego katholikos, “universal”.
O adversário seguinte dos papas surgiria na forma de um
ex-aliado. Na época, a segurança do Estado Pontifício
era mantida por tropas do Sacro Império Romano – fundado
por Carlos Magno, filho de Pepino. Em troca da proteção,
os imperadores exerciam uma pesada influência sobre a
Igreja. Na prática, o líder da cristandade era um
pau-mandado. Em 1073, surgiu um papa disposto a virar o
jogo. Baixinho e de voz aguda, Gregório 70 tinha um
temperamento tinhoso, que lhe rendeu o apelido de Santo
Satanás. Em um decreto famoso, determinou que os
pontífices não só tinham o direito de legitimar
soberanos como também podiam depô-los. E declarou que o
papa não era só o líder da Igreja mas o “senhor do
mundo”. Isso enfureceu Henrique 40, soberano do Sacro
Império Romano. Sem pestanejar, Gregório o excomungou.
“A excomunhão era uma ferramenta poderosa. O excomungado
ficava proibido de ir à missa e receber sacramentos –
num tempo em que a religião estava entranhada na vida
cotidiana, essa punição era terrivelmente pesada”, diz a
historiadora Andréia Frazão, especialista em Igreja
medieval. No inverno de 1077, Henrique foi pedir perdão
às portas do castelo de Canossa, na Itália, onde o papa
se hospedava. O Santo Satanás o obrigou a esperar 3 dias
na rua, debaixo de neve, antes de absolvê-lo.
Com o implacável Gregório, o papado passou da defensiva
para o ataque. Se antes precisava de proteção, agora se
impunha com ameaças de excomunhão. Hoje, os papas se
declaram apenas pastores espirituais. Naquela época,
eram soberanos políticos com sonhos de hegemonia,
dispostos a conquistar o mundo pela cruz e pela espada.
A maior prova de poder e ambição veio em 1095, quando
Urbano 20 ordenou que os reis cristãos marchassem contra
o Oriente Médio para “libertar” Jerusalém, governada por
muçulmanos desde o século 7. Cerca de 25.000 peregrinos
e guerreiros cristãos começaram a escrever uma das
páginas mais brutais da história: as Cruzadas. Durante a
tomada de Jerusalém, em 1099, quase todos os judeus e
muçulmanos da cidade foram massacrados. Nos 200 anos
seguintes, mais 8 cruzadas marchariam sobre a Terra
Santa.
Um século depois de Gregório, em 1198, subiu ao trono
Inocêncio 30 – o papa mais poderoso da história. Agora o
papado era uma potência militar, capaz de contratar os
próprios exércitos, e também uma instituição milionária.
Camponeses e artesãos europeus eram obrigados a rechear
os cofres da Igreja com um décimo de suas rendas anuais,
o “dízimo eclesiástico”. A opulência papal era tanta que
começou a atrair ódio. Na época de Inocêncio, ganhou
força no sul da França uma seita conhecida como catarismo que
negava a autoridade do papa e o chamava de
filho do demônio. Inocêncio respondeu com fúria ao
desafio. Em 1209, convocou uma guerra santa contra a
“seita maldita”: aldeias foram queimadas, multidões
chacinadas. Para aniquilar o que sobrou do catarismo,
Gregório 90, sucessor de Inocêncio, criou em 1233 a
Santa Inquisição, tribunal de clérigos com o poder de
acusar, julgar e condenar inimigos da Igreja. Com o
tempo, o Santo Ofício se espalhou por outros países e
passou a perseguir e queimar não só cátaros, mas todos
que discordassem dos dogmas católicos – judeus,
cientistas, gays. As sociedades cristãs se tornaram
perseguidoras e teocráticas. Por outro lado, a
estabilidade alcançada na marra alavancou o
desenvolvimento que transformaria a Europa na maior
potência mundial. Cronistas descrevem o mais terrível e
bem-sucedido dos papas como um sujeito afável que
gostava de contar piadas. Mas também fiel a sua passagem
favorita da Bíblia, em que Deus diz a Jeremias: “Eu vos
alcei por cima das nações e dos reinos para vencer e
dominar, para destruir e conquistar”.
Decadência com elegância
Entre os séculos 13 e 15, o sonho da hegemonia implodiu.
As Cruzadas acabaram em fiasco: em 1292, os europeus
foram definitivamente expulsos pelos sultões islâmicos.
Dentro da Europa, os delírios absolutistas do Vaticano
revoltaram até o clero. Foi Lorenzo Valla, um sacerdote,
que desmascarou a Doação de Constantino, em 1440. Valla
provou que o documento estava cheio de erros históricos
– de acordo com os biógrafos antigos, Constantino nunca
sofreu de lepra. O prestígio espiritual da Santa Sé foi
estremecido – as excomunhões perderam a eficácia e os
reis começaram a peitar os papas. Enquanto isso, a
educação deixava de ser privilégio do clero,
universidades pipocavam pela Europa, a ciência e a arte
vicejavam: era o Renascimento.
A influência mundial esmorecia, mas os papas ainda eram
príncipes ricos e poderosos em seu território. E, aos
poucos, a boa vida afrouxou os costumes da Igreja. O
celibato passou a ser um detalhe esquecível e Roma
mergulhou numa luxuriosa dolce vita. A carreira
eclesiástica virou ímã para oportunistas interessados
na fortuna da Igreja. Exemplo máximo foi Rodrigo Borgia
(ou Alexandre 60), eleito papa em 1492 graças à pesada
propina distribuída aos eleitores – pesada mesmo: eram 4
mulas carregadas de ouro. Bonitão e sedutor, Alexandre
tinha duas amantes oficiais, deu festas de arromba no
Palácio Apostólico e gerou 7 filhos conhecidos, alguns
presenteados com rentáveis cargos eclesiásticos.
Apesar da má fama, os papas da Renascença souberam usar
sua riqueza para deixar um legado cultural exuberante.
Construíram bibliotecas, ergueram monumentos e
transformaram a cidade em um tesouro para os olhos. O
maioral entre os papas da arte foi Júlio 20, que subiu
ao poder em 1503. Pai de 3 filhas, em vez de rezar
missas de batina ele preferia comandar exércitos,
vestido em sua armadura de prata. Nos intervalos entre
batalhas, o papa guerreiro patrocinou alguns dos maiores
gênios da época, como os pintores Michelangelo e Rafael.
Com a proteção e os salários pagos pelo Vaticano, eles
realizaram obras-primas como as incríveis pinturas no
teto da capela Sistina, de Michelangelo.
Foi justamente a admirável extravagância de Júlio que
detonou a pior crise na história da Igreja. Em 1505, o
papa começou a reconstrução da Basílica de São Pedro, no
Vaticano, que estava em ruínas. Para financiar as obras,
autorizou todas as igrejas da Europa a vender
“indulgências” – documentos que davam absolvição total
dos pecados em troca de dinheiro. Isso enfureceu o monge
alemão Martinho Lutero, que em 1517 publicou
95 teses
denunciando a corrupção da Igreja. Começava a Reforma
Protestante. Pouco depois, cristãos da Alemanha, da
Holanda e da Europa Central já renegavam a autoridade do
papa e a supremacia de Roma. O continente mergulhou em
dois séculos de guerras religiosas.
Medo da modernidade
Mas a Igreja ainda tinha dias piores “pela frente”. No
século 18, a Europa viu o florescimento do Iluminismo,
movimento filosófico que colocava a razão e a ciência no
centro do mundo e questionava o valor absoluto da fé e
das tradições. Pensadores iluministas, como o francês
Voltaire, defendiam que todos os homens nascem iguais e
têm o direito de escolher a própria religião. Esse novo
jeito de pensar passou dos intelectuais para as massas:
em 1789, a Revolução Francesa guilhotinou privilégios (e
padres) e desapropriou terras da monarquia e da Igreja.
Firmava-se o divórcio litigioso entre religião e Estado
no Ocidente. De patrono das artes, o papado virou
inimigo do progresso, entrando numa fase de pânico
apocalíptico em relação a tudo o que cheirasse a
modernidade – condenava até ferrovias e iluminação a
gás. No século 19, a moralidade rígida era de novo a
norma do Vaticano. O papa, que antes acumulava funções
de político e soldado, passou a ser visto pelos fiéis
como um santo vivo, casto e distante.
Em 1870, um movimento nacionalista unificou a colcha de
retalhos que era a Itália e transformou as terras papais
em propriedades do novo Estado. No início do século 20,
o sucessor de Pedro estava pobre e reduzido a uma
nulidade política. Os palácios do Vaticano caíam aos
pedaços, com esgotos entupidos e ratos. Foi nesse aperto
que Pio 11 assinou o controverso Tratado de Latrão, que
incluía não apenas um território soberano mas também uma
doação de cerca de US$ 90 milhões – o suficiente para
tirar as contas do vermelho. Foi uma bela virada. Hoje,
o Vaticano divulga lucros anuais de mais de US$ 200
milhões, incluindo doações de dioceses e investimentos
em empresas européias.
O pacto com Mussolini foi terrível para a imagem do
Vaticano. No fim da vida, Pio 11 repensou suas alianças
e escreveu uma encíclica condenando o anti-semitismo –
na época, Hitler já tinha dado a largada para o
Holocausto. Diz a história que faltavam dois dias para a
publicação do texto quando ele morreu, em 1939. Numa
decisão desastrosa, o sucessor, Pio 12, arquivou a
encíclica redentora: ele via no regime nazista um
incômodo necessário na luta contra a maior das ameaças,
o comunismo. “Mesmo após o início da 2a Guerra Mundial,
Pio 12, um papa eloqüente, que fazia milhares de
discursos sobre todos os assuntos possíveis, jamais
denunciou os crimes nazistas. Adolf Hitler, que se dizia
católico, nunca foi excomungado”, escreve o teólogo
alemão Hans Kung em Igreja Católica.
Em 1958, a morte de Pio 12 deu início a um dos conclaves
mais agitados do século 20. Para impedir a eleição de um
conservador, cardeais progressistas votaram em peso em
Angelo Roncalli (ou João 23), que quase com 80 anos
parecia inofensivo. Nem bem subiu ao poder, o velhinho
bonachão surpreendeu até os liberais ao convocar o
Concílio Ecumênico Vaticano 20 – o objetivo, nas
palavras do próprio João, era “atualizar” a Igreja.
Concílios – ou seja, assembléias universais de bispos –
ocorriam desde o início do cristianismo e eram um
resquício de sua democracia primordial. Mas, desde a
Idade Média, as decisões eram controladas ou censuradas
pelo tacape do papa de plantão e seus funcionários mais
próximos. A proposta radical de João 23 era afrouxar a
hierarquia e dar mais poder de decisão aos bispos
reunidos.
O concílio trouxe mudanças antes impensáveis. Entre
outras coisas, reconheceu o direito de cada indivíduo
escolher a própria religião – o que abriu canais de
diálogo com outras crenças. A liturgia foi reformada e
as missas passaram a ser rezadas nas línguas locais, e
não em latim. Mas João morreu de câncer em 1963,
deixando o concílio pela metade. Seu sucessor, Paulo 6º,
permitiu-se dominar pela ala conservadora e
barrou a
mais importante de todas as propostas: uma revisão do
“primado de Roma”, a tese que sustenta a autoridade
suprema dos papas. “Houve tristeza e indignação entre os
bispos reunidos. Mas ninguém protestou em público”,
escreve Kung, um dos teólogos progressistas que
participaram do concílio – e também um indignado tardio,
que só tornou pública sua revolta a partir de 1970,
quando passou a publicar livros criticando a doutrina
absolutista do Vaticano.
A luta pela alma da Igreja Católica continua. João Paulo
20, que sempre foi um carismático e popular conservador,
não mexeu em doutrinas controversas, como a condenação
dos anticoncepcionais. As perspectivas para uma futura
reforma do papado são nebulosas. Por volta de 2001, Hans
Kung e outros teólogos liberais fizeram lobby por um
Concílio Vaticano 3º – mas a idéia foi barrada pela
Congregação para a Doutrina da Fé, novo nome para um
velho órgão: a Inquisição. Hoje, claro, ela não queima
ninguém, mas ainda tem o poder de travar mudanças nos
dogmas e censurar teólogos moderninhos, como fez com o
brasileiro Leonardo Boff, proibido de falar em público
após criticar a postura centralizadora da Igreja. Na
época em que o novo concílio foi recusado, o cabeça do
Santo Ofício era um certo cardeal alemão, conhecido como
intelectual brilhante. Amigo de Kung nos anos 60, ele
simpatizava com a ala progressista. Mas mudou de idéia.
Afastou-se do antigo companheiro e se tornou
porta-estandarte da facção conservadora. Hoje, anda ao
lado de cardeais como Giacomo Biffi, que durante o
sermão da Quaresma deste ano na Santa Sé
afirmou que a
vinda do anticristo se aproxima – e que o enviado do
Diabo estará disfarçado de “ecologista, pacifista ou ecumenista”. O nome desse cardeal alemão, você já deve
ter adivinhado. É Joseph Ratzinger.
Hoje, a escolha de um novo papa é um dos rituais mais
inflexíveis da Igreja. Mas até o século 11 a coisa era
um legítimo pandemônio. Na Antiguidade e no início dos
tempos medievais, as eleições eram feitas por aclamação
– povo e clero se reuniam e gritavam o nome do sucessor.
Funcionava tão bem quanto as competições em que o
auditório decide o vencedor. Em 366, por exemplo, dois
homens se declararam vencedores: Ursino e Dâmaso.
O
impasse se resolveu no tapa. Dâmaso, depois canonizado,
enviou mercenários para trucidar o rival em uma igreja.
Mais tarde, o direito de votar ficou limitado a padres
de Roma e bispos das cidades vizinhas. O problema é que,
entre os séculos 8 e 11, o clero era controlado por
aristocratas que impunham sua vontade na base de
subornos e ameaças.
Quem colocou ordem na casa foi Gregório 7º. Em 1073, ele
determinou que os papas deveriam ser eleitos
exclusivamente pelos cardeais. Logo um novo problema
surgiu: intrigas e debates faziam a escolha demorar
meses. Em 1268, após a morte de Clemente 4º,
as reuniões
se estenderam por 3 anos. Furiosos com a demora, os
habitantes da cidade de Viterbo – onde estavam reunidos
os clérigos – trancafiaram o grupo de eleitores dentro
de um palácio e os deixaram a pão e água até que
chegassem a um acordo.
O papa seguinte, Gregório 10, tratou de prevenir futuras
trapalhadas estabelecendo regulamentos rígidos.
A
eleição, que antes era pública, se tornou secreta.
Manteve-se o costume de trancar os cardeais até o fim
das votações – daí o nome conclave, do latim cum clavis,
com chave. Desde o século 19, a votação é feita na
capela Sistina – as cédulas de papel são depositadas no
altar, sob as pinturas de Michelangelo. Quando um nome
recebe pelo menos dois terços dos votos, está eleito o
papa – e as cédulas, queimadas numa lareira do Palácio
Papal, produzem aquela festejada fumacinha branca, sinal
de que o catolicismo tem um novo líder.
756
Até o século 8, os papas tinham apenas propriedades
privadas, casas, palácios, campos aráveis. Mas,
em 756,
o rei franco Pepino transformou as regiões da Romagna,
Emilia e Ravena em território da Santa Sé. Lá, o papa
era rei. O Estado Pontifício incluía cidades importantes
e ricas, como Bolonha, Orvieto e Roma.
Século 16
Na Renascença, o Estado Pontifício atingiu seu tamanho
máximo – o papa Júlio 2º conquistou e anexou as regiões
de Ferrara, Módena e Parma. Uma inteligente política
cultural e financeira transformou o Estado Pontifício em
um território rico, fazendo de Roma a capital
intelectual, e não só religiosa, do Ocidente.
Século 19
Após a Revolução Francesa, em 1789,
os papas se tornaram
governantes retrógrados. Condenavam tudo o que parecesse
moderno e proibiram até a construção de ferrovias,
pontes e a iluminação a gás no Estado Pontifício – que
acabou virando o mais atrasado da Europa. A maior parte
do reino papal acabou conquistada por Vitor Emanuel, o
aristocrata que unificou a Itália. O último bastião, as
terras ao redor de Roma, caiu em 1870.
Biografia Não Autorizada do Vaticano, Santiago Camacho,
Planeta, 2006.
Igreja Católica, Hans Kung, Objetiva, 2002.
Santos e Pecadores, a História dos Papas. Eamon Duffy,
Cosac & Naify, 1998.
(Sunterinteressante, maio/2007, pags. 59-67)
Ver também
HISTÓRIA
SECRETA DO CRISTIANISMO