O economista inglês John Maynard Keynes, uma das mentes mais brilhantes
do século XX, escreveu, com alguma ironia, que muitas pessoas práticas, que
se julgam isentas de qualquer tipo de influência intelectual, são,
frequentemente, escravas das ideias de algum economista morto há muito
tempo. Transplantado para outro contexto, o comentário de Keynes se aplica
perfeitamente à cantora Amy Winehouse, que morreu no sábado dia 23 de julho,
depois de um longo, penoso e terrivelmente público processo de
autodestruição por substâncias tóxicas. Ela tinha 27 anos. Seu corpo foi
encontrado na cama por um segurança de sua casa, no bairro londrino de Camden Town.
A primeira autópsia, realizada no dia seguinte à tragédia, foi
inconclusiva, mas a causa da morte de Amy, como Keynes poderia dizer, é
conhecida. Ela foi vítima de uma ideia – uma ideia criada há mais de 200
anos, no alvorecer da Revolução Industrial, sobre como deveriam ser e como
deveriam viver os artistas. Para os poetas românticos do século XIX, que
ainda hoje influenciam nossa visão de mundo, o artista deveria,
necessariamente, ser um rebelde e marginal, guiado apenas por suas emoções,
insubmisso às regras sociais que regem a vida dos mortais comuns. As marcas
distintivas de seu gênio seriam o isolamento, a incompreensão, a melancolia
e o desespero. Nada mais heroico, para eles, do que confrontar a morte e a
degeneração física. Nada mais bonito do que morrer jovem. Como Amy.
“Era como se Amy estivesse empurrando a si mesma para o despenhadeiro,
para finalmente encontrar a bênção da extinção da consciência”, disse a
ÉPOCA Camille Paglia, uma das mais influentes críticas culturais americanas.
A escritora afirma que Amy pertence a uma tradição de “grandes, mas
autodestrutivas” cantoras modernas, que buscavam inspiração em sua dor e seu
caos internos, como Billie Holiday, Judy Garland e Janis Joplin. “Elas
tinham uma comunicação enlevada com o público, a quem abriram o coração”,
diz a autora de Personas sexuais, um estudo monumental sobre arte,
comportamento e sexualidade. “Mas elas também tinham medo do público e,
ainda mais, da banalidade da vida diária. As drogas e o álcool entorpeciam a
sensibilidade excessiva e mantinham a realidade afastada.”
Incluir Amy entre as “cantoras autodestrutivas” não representa um
julgamento moral. É parte necessária do processo, agora inevitável, de
entendê-la, assim como a época em que ela viveu e a longa tradição cultural
(e comportamental) em que se inseriu. A garota judia do norte de Londres não
foi apenas uma vítima passiva dos traficantes. Tampouco estava previamente
condenada pela sensibilidade de seu cérebro à serotonina, liberada pelo
consumo de heroína, crack e, ao final, segundo seus parentes e amigos,
apenas quantidades predatórias de álcool e tabaco.
Amy escolheu por livre-arbítrio integrar-se a uma linhagem que teve
início com Lorde Byron (1788-1824), o poeta que escandalizou a Inglaterra
com seu comportamento libertino e morreu exilado, na Grécia, aos 36 anos. A
esse mesmo exército de almas exaltadas e vulneráveis pertenceram, em épocas
diferentes, o escritor Scott Fitzgerald, o ator James Dean e o brasileiro
Cazuza (leia o quadro abaixo). Todos eles foram grandes artistas
que, na gíria americana, acenderam as duas pontas da vela ao mesmo tempo e, consequentemente, morreram antes da metade da vida, deixando atrás de si uma
lenda e legiões de admiradores.
Não existe uma explicação definitiva sobre as razões que levam pessoas
talentosas a agir dessa forma. Seria o meio artístico capaz de induzir o
comportamento excessivo ou – do contrário – ele atrairia um número
desproporcional de pessoas emocionalmente inclinadas a adotar hábitos
destrutivos? Ninguém tem essa resposta, mas o pesquisador britânico Mark Bellis, diretor do Centro de Saúde Pública da Universidade John Moores, em
Liverpool, constatou que a vida breve e intensa de astros da música como Amy
Winehouse não é apenas mito. Eles, de fato, morrem mais cedo do que o resto
das pessoas.
Bellis e sua equipe analisaram a vida de 1.064 artistas presentes na
lista dos 1.000 melhores álbuns da história, elaborada no ano 2000. Ao
comparar a idade em que morreram alguns dos artistas integrantes da lista
com a expectativa de vida dos habitantes do Reino Unido e dos Estados
Unidos, de onde vinha a maior parte dos músicos, ficou claro que a vida de
rock star era mais perigosa. Eles corriam risco 1,7 vez maior do que os
cidadãos comuns de morrer prematuramente. Viver da música antes dos anos
1980 também parecia ser mais perigoso. A pesquisa mostrou que, entre os
artistas que ficaram famosos antes da década de 1980, 3,6% morriam, talvez
vítimas da experimentação cultural (e química) das décadas de 1960 e 1970.
Entre os anos 1980 e 1990, dominados pela geração saúde, a porcentagem caiu
para 1,6%. Por trás das mortes havia, em quase 30% dos casos, drogas ilegais
e álcool. “Fatores como estresse, perda de popularidade e a exposição a
ambientes onde o álcool e as drogas estão à disposição podem contribuir para
o uso abusivo de substâncias e outros comportamentos autodestrutivos”,
escreveram os autores do artigo, publicado em 2007.
O estudo de Bellis quantificou o problema, mas não conseguiu avançar em
suas causas. Outros, entretanto, continuam especulando. O psicólogo
britânico Tomas Chamorro-Premuzic, que analisa a personalidade de
participantes de reality shows, diz que Amy, assim como outros ídolos que
morreram jovens, lutava contra a angústia de se tornar apenas mais um.
Conforme envelhecemos, diz ele, nos tornamos emocionalmente estáveis, mais
condescendentes e menos abertos a novas experiências. “Por isso, parece que
envelhecer é uma grande ameaça à aventura criativa, especialmente se você
for um astro do rock”, escreveu Chamorro-Premuzic. “A batalha que os
Hendrixs, Winehouses ou Morrisons deste mundo têm lutado é contra sua
própria transformação.”
O psiquiatra americano Richard Berlin aborda o assunto de outra
perspectiva: a futilidade artística do processo autodestrutivo. “Para a
maior parte dos artistas, trabalho duro, disciplina, foco e motivação são
essenciais para o trabalho, e essas qualidades não são potencializadas pelo
uso de drogas”, diz ele. Berlin, ele próprio poeta, organizou em 2008 o
livro Poets on Prozac (Poetas que tomam Prozac), em que artistas
contavam as dificuldades que encontravam para criar por causa de doenças
mentais e da dependência química. O glamour que costuma cercar esses
personagens, diz ele, camufla a realidade terrível do convívio diário com as
drogas e suas consequências. Ajuda também a obscurecer um fato óbvio: a
dependência química e a morte prematura impedem o amadurecimento de talentos
e obras que se anunciavam incrivelmente promissores: “Quando esses artistas
se tornam mitos, há aspectos deixados do lado de fora da história: quanto
eles sofreram na verdade e como a morte prematura colocou fim às grandes
obras que eles ainda poderiam produzir”.
Com Amy foi assim.
Em dezembro de 2007, quando ela estava publicamente no auge, há relatos
de que vivia intimamente apavorada com a perda dos dentes, que se soltavam
como pregos frouxos por causa do uso excessivo de drogas. Há fotos dela
nessa época vagando de madrugada, descalça, pelas ruas de Londres,
completamente desorientada, vestindo apenas sutiã e calças jeans. Amy tinha
24 anos e passara, pouco antes, por duas internações para tentar livrar-se
das drogas. Seu marido, Blake Fielder-Civil, um ano mais velho, estava na
prisão por agressão e suborno numa briga de bar. Em agosto do mesmo ano, os
dois foram fotografados sujos de sangue e desgrenhados, depois de uma briga
doméstica que terminou na rua. A palavra decadência é insuficiente para
descrever o estado e o comportamento do casal.
Há também a questão da obra interrompida. Na semana passada, a gravadora
Universal anunciou que Amy deixou pronto um álbum, que deverá ser lançado
até o fim do ano. Esse disco tem reggaes e baladas (antes rejeitados pela
gravadora) que ela compôs entre janeiro e fevereiro de 2009 no Caribe, onde
se escondeu por algum tempo das drogas e de seus problemas com o marido.
Será seu terceiro álbum – depois de Frank, de 2003, e do
espetacular Back to black, de 2006 – e nunca mais haverá outro. “Em
circunstâncias melhores, seu segundo disco teria sido a fundação para um
longo e maduro catálogo de obras”, escreveu John Pareles, principal crítico
de música do New York Times. “Agora, ele permanece como um alerta
de que a senhorita Winehouse foi incapaz de se cuidar.”
Amy começou a ser cantora em 2003, aos 18 anos, cultuada por um público
restrito. Ela conquistou imediatamente os mais exigentes – os próprios
músicos, que se renderam ao timbre rouco em registro de contralto,
características que lembravam as grandes cantoras negras do século XX. O
número de fãs foi crescendo aos poucos, à medida que suas interpretações se
impregnavam na memória popular. No final, sua voz e interpretação comoveram
tanto os jovens como os mais velhos. Não chegou a ser uma grande estrela pop
da dimensão de Madonna ou Beyoncé, mas influenciou a música de seu tempo de
forma definitiva. Ela impressionava pela presença. Havia uma contradição
sedutora entre a imagem da menina branca e frágil e sua força vocal –
dissonância acentuada pelo atrito entre música retrô e letras brutalmente
contemporâneas.
Se suas melodias se plasmam diretamente nas canções dos anos 1960, as
letras de suas canções mostram uma sinceridade avassaladora. Amy soube expor
seu corpo e sua alma por meio de suas composições – e isso fez dela a
cantora mais influente da década de 2000. Laura Barton, crítica do The
Guardian, de Londres, lembrou que as músicas de Amy estavam repletas de
“conversas de garotas, xingamentos, bebidas, drogas e p...”. “Ela cantou
abertamente o desejo feminino”, escreveu. “Não a sexualidade gritada de
Sex and the city, mas algo mais verdadeiro, mais físico, mais sério.”
Amy se transfigurava ao fechar os olhos para cantar. Nos vídeos que
gravou em seus dias de ápice, por volta de 2007, dramatiza as melodias,
carrega-as de ornamentos do gospel e transforma as letras em sussurros de
intenso desamparo. Em muitos momentos, cantava como se sonhasse. Atingiu,
precocemente, uma intensidade que muitos dizem que somente a americana
Billie Holiday conseguiu realizar. Amy viveu pouco, mas chegou às
profundezas do sentimento amoroso. Seu legado é mais consistente que a reles
imagem do ídolo transgressor. Ela se revelou fundamental na reabilitação da
arte vocal na música pop e no revival do gênero soul. Sua voz marcou a
primeira década do século XXI. Na contracorrente das estrelas pop como
Beyoncé e Lady Gaga, ela se mostrou retrô, vintage, tanto no comportamento
autodestrutivo como na música. No início do novo milênio, Amy preferiu
cantar e viver para o passado – virando, pelo avesso, uma genuína inovação.
Nos últimos anos, seu talento foi minado e encoberto por seu
comportamento. Back to black vendeu 10 milhões de cópias, mas a
audiência global para os desastres pessoais da cantora era muito maior. Seu
declínio, entremeado por vexames públicos e tentativas frustradas de
recuperação, era acompanhado passo a passo pela mídia, sempre com enorme
interesse do público. Amy tornou-se um personagem. Quando ela morreu, as
pessoas deixaram garrafas de vodca e cigarros em frente a sua casa, como se
esses sintomas de sua doença pudessem, numa simplificação aterradora,
representá-la. Não houve realmente choque com sua morte. Ela pareceu somente
a conclusão lógica de uma parábola moral que vinha se desenrolando desde
2007.
O psiquiatra Richard Berlin compara esse espetáculo macabro a um ritual
de imolação. “Tenho certeza de que todos nós obtemos prazer ao saber dos
excessos de drogas, sexo e rock-and-roll”, diz ele. “Esse é um aspecto do
nosso interesse por celebridades. Nós nos identificamos com elas, podemos
experimentar prazer por meio delas e, ao mesmo tempo, manter nossa
segurança.” Mas há outro lado nessa história, como lembra Camille Paglia. A
queda do herói romântico, o final melancólico do transgressor que nos
representa também fazem parte do espetáculo.“Emoções primitivas podem
emergir do público conforme a estrela começa a cair”, diz ela. “A estrela
ferida (ou autoferida) se torna vítima em um ritual, massacrada e
feita em pedaços pelo voyeurismo do público.” Em entrevista ao The
Guardian, um dos amigos de Amy contou a experiência assustadora de
acompanhá-la a um local público. “Havia gente oferecendo bebidas, dizendo
que a amava. Outras atiravam coisas e diziam besteiras que nem quero
repetir. E o tempo todo havia o assédio horrível dos paparazzi. Eu fiquei
bestificado”, disse ele.
OS SOBREVIVENTES
Keith Richards, de 68 anos, dos Stones (à esq.), e
Iggy Pop, de 64, vocalista dos Stooges. Eles sobreviveram ao
processo que destruiu Amy. Richards diz que seu controle rigoroso
das doses que consumia o salvou. Iggy, um descontrolado, parece ter
tido apenas sorte: “Eu cantava para pessoas verdadeiras”
Keith Richards, guitarrista da banda britânica Rolling Stones, talvez o
mais famoso e longevo sobrevivente dos excessos da droga, conta no livro
Vida, publicado no ano passado pela Editora Globo, como é a experiência
de amor e ódio do público. Por causa de seus abusos, Richards chegou em 1973
à lista dos dez astros do rock-and-roll que estavam mais perto da morte,
elaborada por uma revista britânica. Ocupou o topo do ranking por dez anos.
“Nesse período eu sentia muitas vezes que havia gente desejando minha morte,
mesmo alguns bem-intencionados”, ele escreveu. “No começo, eu era uma
novidade. Então passaram a querer que eu me ferrasse. Depois, como eu não me
ferrei, passaram a querer me ver morto.” Há uma quantidade imponderável de
paranoia induzida por drogas nesse raciocínio, mas a ambiguidade do público
é real.
Richards, hoje com 68 anos, diz estar livre da heroína desde 1978 e da
cocaína desde 2006. Mas ainda se diverte com a imagem de rebelde que as
pessoas construíram dele – e se recusam a apagar, mesmo que ele esteja
“comportado” há décadas. “As pessoas adoram essa imagem”, afirma. “Elas
querem que eu faça coisas que não conseguem fazer. Têm de fazer seu
trabalho, são vendedores de seguros. Mas, ao mesmo tempo, dentro delas há um
Keith Richards vagando.” Ele conta que decidiu acabar com sua dependência de
heroína quando percebeu que não era mais dono da própria vida. “Não importa
sob que ângulo você encare a coisa, os junkies vivem esperando pelo cara
(o traficante) . Seu mundo se reduz à droga”, escreve. “Eu havia me
apegado tanto ao veneno que estava ficando impossível me mover pelo mundo e
trabalhar.”
Amy ignorou também esse limite. Em junho, depois de um breve período em
uma clínica de recuperação, iniciou uma turnê europeia por Belgrado, capital
da Sérvia, mas não passou da primeira apresentação. Aparentando estar
bêbada, não conseguia acompanhar a banda ou lembrar as letras de suas
próprias canções. Teve de sair do palco sob uma enxurrada de vaias. Foi sua
última aparição profissional.
A ciência ainda não consegue explicar por que algumas pessoas resistem
melhor que as outras ao ataque destrutivo das drogas. O americano Iggy Pop,
um musculoso e hiperativo senhor de 64 anos, é outro exemplo de assombrosa
durabilidade. Nos anos 1970, sob o efeito de coquetéis alucinógenos, ele
protagonizava espetáculos de autodestruição ao vivo, como vocalista dos
Stooges. Iggy se cortava com vidro quebrado e pingava vela derretida sobre o
torso nu. No palco. O jornalista britânico Nick Kent conta que, em 1974,
Iggy foi espancado, chicoteado e esfaqueado durante um show em Los Angeles.
Depois foi largado inconsciente e sangrando na rua, dentro de um saco. O que
acha disso tudo, hoje em dia, o saudável autor de “Candy”? “Toda essa
porcaria autodestrutiva que eu supostamente fiz”, diz ele. “Eu só fiz porque
acreditei que estava cantando a música que as pessoas verdadeiras queriam
ouvir.” Ao contrário de Richards, que se gaba de ter administrado suas doses
de heroína com parcimônia e rigor de farmacêutico, Iggy parece não ter
aprendido nada. E nada tem a ensinar. Teve sorte, apenas.
“Algumas pessoas simplesmente são mais resistentes aos efeitos das
substâncias químicas. Há um componente genético”, diz o psiquiatra Pablo
Roig, diretor da Greenwood, clínica para dependentes químicos que recebeu o
comentarista esportivo Walter Casagrande em 2007 e o ator Fábio Assunção no
fim de 2008. O tipo de droga e a interação entre elas também parecem ter
diferentes níveis de impacto sobre o organismo. “Algumas pessoas exageram
mais nas combinações e nas doses porque têm uma tendência autodestrutiva
maior”, diz Roig. Amy parece ter estado entre essas. E teve azar. Não
atingiu a idade em que a maturidade poderia empurrá-la, naturalmente, a um
grau maior de moderação. Morreu jovem, deixando desamparada uma multidão de
fãs, como o estudante Alexandre Ferreira, de 24 anos, presidente do fã-clube
de Amy no Brasil.
No dia em que ela morreu, Ferreira diz ter vomitado e ficado com febre.
Ele, que trabalha como garçom em um restaurante de Natal, não conseguiu ir
no sábado. Os chefes entenderam. Sobre as drogas, acredita que o vício dela
era uma doença. Ele diz que não imita e não julga. Pelo contrário, defende.
“Sempre esperei que ela se curasse. Como fã, não queria que acontecesse o
pior”, diz. Tanto melhor que tenha ficado para os fãs apenas o melhor de
Amy.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI253272-15228,00-AMY.html
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