NÃO CABE A UM JUIZ
DIZER COMO O PSICÓLOGO DEVE AGIR
Juiz que autorizou
'cura gay' diz que decisão teve reação 'equivocada'
Bruno Santos/Folhapress
JANAINA GARCIA
DO UOL
21/09/2017 21h15
O juiz da 14ª Vara Federal no Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho,
divulgou nota nesta quinta-feira (21) em que criticou a repercussão sobre a
liminar que, assinada por ele semana passada, autoriza psicólogos a oferecerem
terapia de "reversão sexual" –popularmente conhecida como "cura gay" sem que
sejam punidos pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia). O assunto ganhou forte
repercussão junto à opinião pública.
A liminar atendeu em parte ação popular impetrada por um grupo de psicólogos que
pedia a derrubada total de uma resolução de 1999 pela qual o conselho veta esse
tipo de tratamento. Uma das signatárias da ação é a psicóloga Rozangela Alves
Justino, que processou o colegiado do CRP por conta de censura profissional
imposta a ela por oferecer a terapia a seus pacientes.
Na nota, Carvalho afirma que seu despacho em nenhum momento tratou a
homossexualidade como doença. "Em nenhum momento este magistrado considerou ser
a homossexualidade uma doença ou qualquer tipo de transtorno psíquico passível
de tratamento", diz ele, para quem a "interpretação e a propagação" de sua
decisão foram equivocadas.
O juiz explica que quaisquer questionamentos sobre sua decisão devem ser feitos
judicialmente e avisa que negará todos os pedidos de entrevista submetidos a ele
por ser vedado a um magistrado opinar sobre suas sentenças.
"Considerando ser vedado ao magistrado manifestar, por qualquer meio de
comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento (...); considerando
existir meio processual adequado à disposição das partes para pedir o
esclarecimento de eventuais obscuridades ou contradições em qualquer decisão
judicial (...); este magistrado vem a público declinar dos convites a ele
formulados por diversos meios de comunicação no intuito de debater ou esclarecer
seu posicionamento acerca da questão", escreve Carvalho.
Ele diz ainda esperar "a compreensão do público em geral, em especial daqueles
que não tiveram a oportunidade de ler, em sua integralidade, a referida decisão,
que se encontra disponível no sítio do TRF1".
RECURSO
No despacho, com data do último dia 15, o juiz federal escreveu: "A fim de
interpretar a citada regra em conformidade com a Constituição, a melhor
hermenêutica a ser conferida àquela resolução deve ser aquela no sentido de
não
provar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que, voluntariamente, venham em
busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura".
Esta semana, um dos diretores do CFP, Pedro Paulo Bicalho, afirmou que a
entidade deve recorrer nos próximos dias da decisão por entender que ela é
prejudicial não apenas à categoria -hoje, em número de quase 2.800 psicólogos em
todo o Brasil–, como à população LGBT.
Um dos argumentos do recurso será o de que a decisão pode influenciar e até
aumentar a intolerância à população LGBT, sobretudo entre familiares, e aumentar
os casos de violência. Atualmente, o Brasil é o país que mais mata cidadãos LGBT
no mundo: cerca de 300 assassinatos por ano.
Para Bicalho, "um dos efeitos mais perversos" da decisão judicial poderá ser o
aumento da violência, especialmente a violência familiar contra o LGBT.
"A possibilidade de entender a homossexualidade como algo que possa ser
revertido coloca, de uma forma muito evidente, mais estigmas de exclusão e até
de violência diante contra um suposto 'problema' que deva ser exterminado. Esse
é o grande efeito desse tipo de decisão, pois chancela algo que não tem qualquer
comprovação científica e que já embasa, em muitos casos, a violência dentro de
casa contra o LGBT", explicou o diretor.
OMS
De acordo com o diretor, que é psicólogo há 20 anos e também leciona na UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro), os membros do conselho ficaram "muito
decepcionados" com a liminar, até porque, salientou, o tratamento é proibido por
resolução da entidade desde 1999; desde 1990, a OMS (Organização Mundial da
Saúde) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças.
"Essa é uma decisão bastante paradoxal, porque ela concede o que o grupo de
psicólogos pediu na ação popular, que era a cassação da resolução, mas a
transforma em uma letra morta ao solicitar que a interpretemos de um modo
bastante diferente do espírito com que ela foi criada", destacou o diretor do
CFP, para completar: "Isso autoriza as terapias de 'reversão sexual', o que não
podemos admitir porque a homossexualidade não se configura nem como doença, nem
como desvio –e se não tem desvio, não há nada a ser reorientado. É a expressão
legítima da sexualidade como qualquer outra".
Para o diretor, a reação de setores da sociedade –como de políticos e artistas
contra a decisão liminar deve fortalecer o pleito do CFP. "Precisamos de apoio
popular, de pessoas se manifestando, conversando sobre isso. É o que deve
colocar, esperamos, a Justiça Federal de uma maneira mais cuidadosa ao analisar
o pedido de cassação dessa liminar. Quando um juiz solicita que interpretemos de
outro modo a resolução de um órgão normativo, ele usa do poder do Judiciário
para produzir uma referência técnica que não cabe a ele. Somente a psicologia
pode regulamentar um tratamento psicológico; não cabe ao Judiciário dizer como
um psicólogo deve tratar", concluiu.
PROCESSOS SÃO MINORIA
Segundo dados do conselho, em cinco anos (2012 a 2017), a entidade abriu 260
processos éticos. Desses, apenas três têm ligação direta ou indireta com a
resolução que veta a tentativa de "cura gay".
No CRF, o entendimento é o de que a resolução que veta o tratamento liberado
pelo juiz do DF tem um caráter muito mais educativo que necessariamente punitivo
– o que os próprios números, afirma a entidade, revelam. É como se resolução
"garantisse a preservação ao direito individual que todo ser humano tem de ter
sua orientação sexual e manifestá-la como achar mais conveniente", diz o
conselho. Na prática, um dos efeitos do documento é a eliminação de obstáculos a
casais LGBT que queiram adotar filhos – uma vez que a orientação sexual deles não
representaria uma doença mental digna de tratamento.
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/09/1920675-juiz-que-autorizou-cura-gay-diz-que-decisao-teve-reacao-equivocada.shtml
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