A TORRE DE BABEL E A MULTIPLICAÇÃO DAS LÍNGUAS
02/05/2001
É possível um mundo inteiro falar uma única língua? Ou mesmo
uma única nação falar a mesma língua durante séculos? Se hoje não, seria viável
milênios atrás? Havia condições iguais, melhores ou menos favoráveis à
uniformidade da língua?
"Ora, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar" (Gên.
11: 1).
Não é necessário ser um poliglota para responder às perguntas do parágrafo
inicial. Entretanto, há quatro ou cinco milênios, mesmo os indivíduos mais
inteligentes tinham razões para desconhecer o fenômeno da multiplicação das
línguas. A intervenção divina era a explicação (Gênesis 11: 1 a 9). Hoje é
diferente.
Pense no nosso mundo atual, cheio de dicionários, gramáticas, meios de
telecomunicação, a grande maioria da população podendo deixar suas palavras
gravadas de várias formas para os que estão distantes e para os que ainda não
existem mas irão vê-las e ouvi-las no futuro. Imagine o fato de não podermos, de
posse de todos esses meios, sequer controlar a nossa própria língua por um
século, período tão curto. Passam algumas décadas, os doutores da língua fazem
reforma ortográfica, os dicionários passam a registrar novas variantes de
palavras existentes, algumas antigas vão caindo em desuso, considerando-se
arcaicas, e, assim, só nos restam os registros de como nossos ancestrais
falavam; nós temos sempre uma nova língua.
Considere agora o mundo anterior à escrita, sem os meios telecomunicativos de
que dispomos. Duas famílias separadas por algumas dezenas de quilômetros jamais
se comunicavam, não tinham qualquer noção do que se passava fora do meio em que
viviam. Impossível era saber alguém como falaram seus ancestrais. Cada um
aprendia o que ouvia e ia se esquecendo do passado, uma vez que não havia
registros para se consultarem. Não obstante o número de palavras de uma língua
fosse muito menor do que hoje, a mudança era muito mais célere do que
hodiernamente. Se, após a invenção da escrita, desde a mais rudimentar até os
alfabetos atualmente existentes, vemos variações das línguas, não se pode
conceber a hipótese de uma uniformidade idiomática antes, coisa completamente
ilógica.
Dados arqueológicos comprovam a ocorrência da grande inundação que atingiu o
parte do Oriente. Diversos povos possuem lendas sobre a inundação da qual se
salvaram uma, duas, três ou oito pessoas (Informações de Henry H. Halley, em
Manual Bíblico, pág. 75).
Partindo dos dados arqueológicos e as lendas existentes, sem pensar no resto do
mundo, sem considerar que o dilúvio que originou a lenda da Torre de Babel não
passou de uma inundação local, nunca havendo uma inundação que atingisse a
humanidade inteira, imaginando que os habitantes da terra se concentrassem todos
naquela região, poderíamos concluir que, ou se teriam salvo vários grupos de
pessoas em lugares bem separados, ou teriam sobrevivido apenas uma única
família. Na primeira hipótese, cada grupo poderia ter uma língua diferente; na
segunda, a terra estaria sendo repovoada por uma única família, conseqüentemente
havendo sobre a terra "uma só maneira de falar" (Gên. 11: 1). A diversidade de
formas e números de pessoas sobreviventes poderia ser decorrente das falhas da
tradição: "Una tradición puede ser totalmente falsa, o ser real, pero con
omissiones o adiciones, intencionadas o no" (A. Malet, em Historia del Oriente,
pág. 7). O texto bíblico fala do rei de Babel, como "Ninrode" (Gên. 10: 9, 10),
filho de "Cuxe" (vers. 8), filho de "Cão" (vers. 6), filho de "Noé" (vers. l).
Uma família, na quarta geração, ainda estaria falando a mesma língua, o que
inevitavelmente não poderia perdurar à medida que, multiplicando-se sobre a
terra, a humanidade fosse se dispersando, tornando impossível as novas famílias
se conhecerem, uma vez que não havia os meios de transporte que facilitassem os
passeios a longa distância. Duas famílias separadas por alguns séculos passariam
a falar duas línguas diferentes, uma vez que, sem meios de telecomunicação, as
diferenças se acentuariam mais rapidamente. Esta conseqüência natural daria, sem
margem a dúvidas, origem às centenas de línguas hoje existentes.
Um exemplo bem recente da multiplicação das línguas é a Península Ibérica e
povos próximos. Povos vizinhos, nem tão separados como nos tempos
pré-históricos, converteram o latim em várias línguas, cujas diferenças se
acentuam à medida que passa o tempo.
O verbo latim ponere, entre os portucalenses (atualmente portugueses), passou
por poner, ponher, poer, chegando a nós como pôr. Entre os espanhóis, a mudança
foi mais lenta, ainda hoje dizendo eles poner.
O adjetivo alemão blank, adaptado às línguas neolatinas, é atualmente blanco em
espanhol, bianco em italiano e branco em português.
O substantivo latino pater hoje é padre em castelhano e pai em português; assim
como mater, madre e mãe.
O nosso numeral onze, vindo do latim undeci = um mais dez, passou por undice,
undce, unce, once, chegando a ser onze entre nós.
Civitate, do latim, chegou a nós hoje como cidade.
O nosso pronome de tratamento você é uma redução de vossa mercê. Atualmente,
muitas vezes ouve-se ocê, o que mostra a nossa tendência de eliminar partes das
palavras.
Na nossa língua atual, podemos observar mudanças que se vão operando entre nós:
bom, em linguagem rústica é bão; futuramente será palavra oficial, assim como
non passou a ser não, tornando-se arcaica a forma antiga. obligação, do latim
obligatio, já não é mais forma correta, prevalecendo atualmente obrigação. A
nossa tendência é trocar o l por r e o on por ão.
"Vis maior est cui humana infirmitas resistire non potest." São palavras de Gaio,
no Digesto Romano. Traduzida, a frase é a seguinte: Força maior é aquela a que a
fraqueza humana não pode resistir. A palavra força é uma versão do latim fortia,
uma vez que vis, seu sinônimo, se perdeu no tempo. Maior chegou a nós como a
antiga palavra latina. Est passou por és, chegando a nós como é (o castelhano
ainda diz es). O pronome cui estava no dativo, equivalente ao nosso objeto
indireto, significando a que, ou ao qual, aquilo a que. Humana não sofreu
alteração para nós. Infirmitas = falta de firmeza ou fraqueza, é do que deve ter
originado a nossa palavra enfermidade, que é atualmente sinônimo de doença. A
variação de significado ocorre com o passar do tempo, até dando origem a uma
significação totalmente diferente da original, embora com muito menor
intensidade do que a variação ortográfica.
VARIAÇÃO SEMÂNTICA
Analisemos os adjetivos latinos externus, internus, supernus e infernus.
Externus (de fora), externu, externo. Internus (de dentro) internu, interno.
Essas palavras tiveram mudança ortográfica, mas mantêm hoje o mesmo significado
que tinham há dois mil anos. Supernus (de cima) é uma palavra quase inexistente
na nossa língua atual, significando superior, como antigamente. Infernus (de
baixo) não teve apenas alteração ortográfica. Perdeu sua função adjetiva após
ser substantivada para designar sepultura, que realmente é um lugar inferior.
Como a sepultura é lugar dos mortos, e os povos primitivos acreditavam que ao
morrer o homem, após sepultado, vai sofrer um suplício pelos seus pecados ou vai
ter o gozo merecido por sua justiça, o Cristianismo Romano passou a considerar
inferno como lugar de tormento eterno das almas.
Quando Jacó disse: "Meu filho não descerá convosco; seu irmão é morto, e ele
ficou só; se lhe sucede algum desastre no caminho por onde fordes, fareis descer
minhas cãs com tristeza à sepultura" (Gênesis, 42: 38 AA), ele usou a palavra
hebraica sheol, traduzida para o grego hades, e para o latim infernus. Veja
Salmos l6:l0, "Porque não deixarás a minha alma no inferno (sheol), nem
permitirás que teu Santo veja corrupção" (Sal. 15: 10 PAPF), A versão Almeida
atualizadas traduz sheol por morte. As versões antigas traduziam sempre por
inferno. Em atos 2: 27, Pedro citou o texto como referente à ressurreição de
Cristo, traduzindo sheol para hades, que na Tradução do Padre A. P. de
Figueiredo consta inferno. A mesma palavra usou Jó ao desejar que Deus o
encobrisse no inferno (sheol) (Jó, 14: 13). Um antigo catecismo católico, que eu
lia na infância, dizia que Cristo "desceu ao inferno e ao terceiro dia ressurgiu
dentre os mortos". Ainda em minha infância, conheci a nova versão, que dizia
"desceu à mansão dos mortos", dando-me uma idéia mais nítida de que inferno era
a sepultura.
Certa vez uma colega minha me disse que "Jesus quando morreu ficou três dias no
inferno lutando contra o Diabo em favor do homem". Ela apenas havia lido a frase
"não deixarás minha alma no inferno, nem permitirás que teu santo veja
corrupção", que significa não me deixarás na sepultura, nem permitirá que teu
santo se desfaça, ou apodreça. Pedro citou o texto em Atos 2, para afirmar que
Cristo foi sepultado e ao terceiro dia foi ressuscitado.
A PRONÚNCIA DAS LÍNGUAS ANTIGAS
O que resta das línguas antigas são registros manuscritos. A gravação de som não
existia. Assim não se conhece com exatidão a pronúncia das palavras. Acredita-se
que a desinência latina tia se pronunciasse cia, baseando-se na sua evolução
para a forma atual gratia (latim), gracia (castelhano) e graça (português).
Justitia, justicia e justiça; mas não há unanimidade quanto a essa fonética: há
os que acreditam que o t tivesse nessa desinência o seu som atual do Português e
do Castelhano. Por outro lado, o Francês, que também é língua neolatina, traz o
t com som de c na terminação tion, um apoio à corrente latinista mais antiga.
A dúvida é muito maior quando se refere a uma língua escrita em caracteres
diferentes dos nossos.
Os hebreus designavam o Deus criador de todas as coisa, o único Deus, por quatro
letras: iôde, ê, vau, ê. Jeová é a forma falada atualmente em português. Algumas
versões dizem Javé. Poderia ser Iavé ou até mesmo Ievê. Ninguém pode afirmar com
certeza qual era a pronúncia correta. Como a palavra aleluia significa louvai a
Jeová, conforme tradução das Testemunhas de Jeová, o mais provável seria Iavé,
ou até mesmo Ievê, uma vez que as duas sílabas contêm o ê equivalente ao nosso
e.
Está escrito que sobre a cabeça de Cristo crucificado "estava esta epígrafe (em
letras gregas, romanas e hebraicas) ESTE É O REI DOS JUDEUS." (Lucas 23: 38). O
autor do evangelho de João registrou "JESUS NAZARENO O REI DOS JUDEUS". O texto
grego do Novum Testamentum Graece registra "IHSOUS O
NAZWRAIOS O BASILEUS TWN IOUDAIWN" (IESUS O NAZORAIOS O BASILEUS TON
IUDAION (João, 19:19). A versão latina conhecida é Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum.
Não existia o J em nenhuma das duas línguas. Ele veio a existir posteriormente
no latim. Mas há os que afirmam que antes de vogal o i em latim tinha som de j.
Veja Dicionário de Latim Forense, de Amilcare Carlete, pág. XXXIX. É o que se
deduz através da fonética de línguas neolatinas como o Português e o Francês,
mas com pouca segurança, uma vez que o Italiano tem o J com som de i, ao passo
que o Castelhano pronuncia o j como o r da nossa Língua. Do exposto, se vê que o
efeito atribuído à Torre de Babel é contínuo, inevitável mesmo nos nossos dias,
com todos os meios gráficos e de telecomunicação.
A evolução das línguas, que é, na verdade, o resultado dos erros de aprendizado,
está visível a todo momento, quando alguém diz bão, ocê, tá, em lugar de bom,
você, está, etc.; e quando vemos pessoas de nível superior, até mesmo
professores, dizerem adapita, impuguina e outras aberrações gramaticais.
CONSIDERÁVEIS MUDANÇAS EM POUCO TEMPO
"Um facto grave, Sr. presidente, que se prende á administração publica do paiz
...
Em primeiro logar, antes de passar adiante, pedirei ao honrado ministro da
fazenda, visto que não está presente o seu collega da agricultura, que nos
explique a razão desta divergencia na execução do regulamento.
Repetil-a-hei: na côrte, a parte compra o sello, o empregado entrega-lh’o e ella
sella a carta. Creio que até é vedado ao empregado o sellal-a. No Pará, porém, e
disto dou testemunho, porque o facto passou-se muitas vezes commigo, a parte
entrega ao empregado a carta e a importancia do sello em moeda, o empregado
deixa que a parte se retire e dentro da repartição, a sós, sella elle a carta
para deital-a na mala. Pergunto eu ao governo: o que póde justificar essa
differença na execução do regulamento, que tanto deve reger para a Côrte como
para todo o Imperio? É este o primeiro ponto de minha duvida. Prosigamos.
Há tempos, como já disse, communicou-me um dos dignos deputados por aquella
provincia que se presumia que, na respectiva administração do correio, se dava o
abuso apontado e que elle proprio poderia talvez dar testemunho do facto, porque
as cartas, que recebia do Pará, vinham com sellos de tal maneira borrados que,
prima facie, reconhecia-se que tinham sido usados e já inutilisados. Adduzio
então aquelle digno representante pela provincia do Pará que deste facto lhe
constava estar já inteirada a administração central do correio da Côrte, o que
tambem me pareceu certo, porque nas instruções, que o honrado ministro da
fazenda deu á comissão, que mandou ao Pará, li um aparte relativo ao correio.
Creio eu que o honrado ministro incumbio a comissão de examinar tambem o que
quer fosse no correio do Pará. Este facto, unido á revelação, que me havia feito
o digno representante da provincia do Pará, fez-me crer, fez-me ter quasi como
certa a existencia do abuso ou do crime a que alludi. Descansei, porém, Sr.
presidente, no zelo, nos esforços da administração central do correio para o
descobrimento do crime, e nada quiz revelar, mesmo, senhores, para poupar á
minha infeliz provincia mais este grande desgosto! Entretanto, fui hontem
sorprendido por um facto que se não induzisse á triste cogitação, seria
realmente comico." (Anaes do Senado, 02/04/1877).
Esse texto, escrito há pouco mais de um século, nos mostra o quanto a língua se
altera rapidamente.
As palavras proparoxítonas não eram acentuadas (administração publica), nem as
paroxítonas terminadas em ditongo (provincia).
Pelas palavras sorprendido e logar, notamos que aos poucos vamos
substituindo o o pelo u. No entando, cartulina, culégio e outras pronúncias que
ouvimos ainda são cacoépias que não devemos seguir.
Na palavra hontem podemos notar que o uso do h na nossa língua não tem um
fundamento bem consistente. Basta considerar que muitas palavras de origem grega
iniciam-se com h, e o alfabeto grego não contém letra equivalente.
Vocábulos como paiz, quiz e inutilisados mostram o quanto são frágeis as razões
da nossa ortografia (João de Freitas, em "Proteja Sua Língua").
Essas considerações são suficientes para se ver que a língua não foi
diversificada de um momento para outro, mas tem uma transformação lenta. A Torre
de Babel é apenas uma tentativa de explicar aquilo que não tinha explicação no
passado.
Como complemento deste texto, veja "A
CACOÉPIA E A EVOLUÇÃO DA LÍNGUA
Também A REFORMA ORTOGRÁFICA E SUAS DEFORMAÇÕES
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