Sobre a anunciada "reforma" da Previdência, é
preciso antes de tudo que o povo saiba que o Judiciário
Brasileiro não se resume aos onze ministros do Supremo Tribunal
Federal, confortavelmente instalados em amplos gabinetes,
cercados de todos meios materiais e humanos - embora ainda
insuficientes para dar conta do absurdo volume de processos -
incomparável a qualquer nação do planeta.
O Judiciário Brasileiro também e principalmente se compõe de
milhares de magistrados de primeira instância, que assumiram
seus cargos após anos de estudo e aprovação em concurso
extremamente rigoroso. Esquecidos nos confins do Brasil, sem
meios materiais e humanos e atolados de processos, estes
magistrados têm em suas prerrogativas e garantias
constitucionais (não privilégios) - dos quais se inclui a
aposentadoria integral, os únicos escudos para fazer Justiça
contra a tirania da força bruta e do uso inadequado do poder
político e econômico.
Em muitos Estados, incluindo São Paulo, nem os vencimentos são
compatíveis com as responsabilidades da profissão: a jornada
ininterrupta de trabalho, a ausência de direito a hora extra, o
adicional noturno, o FGTS e a contribuição previdenciária sobre
o salário integral, sem limite máximo. Muito menos para a
anunciada perda da aposentadoria integral, se comparados os
vencimentos com magistrados de outros países da importância do
Brasil ou com cargos da iniciativa privada de semelhante
responsabilidade e exigência de capacitação.
Pergunto à sociedade: até que ponto alguns setores da atividade
do Estado podem ficar comprometidos para que o "bolo" seja
melhor repartido? O que adianta, por exemplo, em uma casa a
família querer distribuir melhor as suas rendas, se para isso
está deixando de dar manutenção aos pilares da residência, que
estão corroídos e ficando comprometidos? E se a casa ruir à
noite, sepultando a todos, de que adiantou?
É como "matar o doente para curar a doença". Amostra do que pode
ocorrer é a atual crise da segurança pública, resultado de anos
de enfraquecimento, desrespeito e sucateamento dos órgãos da
segurança pública, entre eles a Justiça Criminal, e as polícias
civis e militares.
Austeridade e justiça social sim, mas sem demagogia e sem
comprometer os pilares mestres da democracia e do estado de
direito - e o Judiciário é um desses pilares.
Nem as ditaduras sobrevivem sem o Judiciário, que resolve, ainda
que formalmente, os conflitos intersubjetivos do dia-a-dia,
evitando a barbárie e o caos da "justiça pelas próprias mãos",
situação em que impera a lei do mais forte - sabe-se disso desde
a pré-história.
De fato, até os agrupamentos primitivos sentem a intuitiva
necessidade de ter alguém que resolva os conflitos de seus
integrantes. E até nesses agrupamentos tal pessoa é protegida e
respeitada, e é sentida a necessidade de ser assim, para a
garantia de uma decisão justa e imparcial.
Somente a ignorância (no bom ou no mal sentido), a
intransigência ideológica ou a má-fé podem ignorar a função
singular e fundamental do Poder Judiciário para os seres humanos
que vivem em sociedade.
Está se colocando como justa a exceção aos militares, com o
argumento no sentido de que eles podem ser convocados após a
reforma. Isso não existe na prática em um país como o Brasil, de
política não intervencionista, e em relação ao qual não se
vislumbra possibilidade de conflito externo. Ora, se o militar
for convocado à ativa, evidente que receberá o soldo da ativa.
Quanto aos outros argumentos como especificidade da carreira,
impossibilidade de outra profissão e remoções durante a vida,
valem todos para os magistrados.
A aposentadoria integral,como garantia fundamental da chamada
"Constituição Cidadã" (não privilégio), na verdade deve
prevalecer, no mínimo, para todos os agentes públicos das
chamadas carreiras de Estado, e que exercem funções indelegáveis
à iniciativa privada. Está-se falando do Poder Judiciário, do
Ministério Público, da Diplomacia, da arrecadação e fiscalização
tributárias, das Forças Armadas e das polícias civis e militares
- estas três últimas com o agravante que já na ativa seus
servidores são ridiculamente remunerados, a ponto de praças e
soldados morar em favelas, junto àqueles que devem combater.
Na opinião daqueles que advogam uma visão simplista e distorcida
do que seja igualdade, talvez não faça diferença, por exemplo,
as garantias de independência que terá o julgador, se eles
entrarem em contenda judicial contra um poderoso grupo
econômico. O equívoco é evidente, e esta espécie de pensamento
igualitarista míope caiu há tempos, junto com o muro de Berlim.
Os magistrados e os servidores públicos também fazem parte do
povo, especificamente uma parcela do mesmo que fez uma opção de
vida, optando pela carreira pública, pesando suas vantagens e
desvantagens. Esta parcela do povo passou oras a fio conciliando
trabalho e afazeres domésticos com o estudo diuturno para
enfrentar concurso público de aprovação tão mais difícil quanto
maiores as responsabilidades e as garantias do cargo.
Os cargos públicos de carreira, portanto, não caíram "de mão
beijada" aos servidores e aos magistrados como parecem acreditar
alguns e são acessíveis a qualquer brasileiro que opte por tal
caminho e preencha os requisitos mínimos relativos a cada
carreira.
Para a maioria dos servidores essa opção de vida hoje é
irreversível, de modo que, antes de se falar em conceitos
jurídicos de direito adquirido, deve-se pensar na dignidade do
servidor como pessoa humana. Sob a égide desse respeito, o
direito à aposentadoria somente poderia ser retirado, se for
esse o equivocado caminho, aos que ingressem nas carreiras
públicas após a "reforma".
Contudo, o que se propõe hoje equivale a dizer, por exemplo, na
virada do primeiro para o segundo tempo de uma partida de
futebol, que só é permitido ao goleiro permanecer na grande
área, e que não há mais impedimento - e dizer que estas regras
valem somente contra o time que, por seus méritos, estava
ganhando.
Tratar todos iguais é ditadura neo-comunista. Democracia é
conferir igualdade de oportunidades e tratar os desiguais
desigualmente, na proporção de suas desigualdades - sempre a
todos respeitando.
E para se conseguir igualdade de oportunidades, muito mais
urgente que a reforma da Previdência - que na verdade talvez só
precise de uma completa e profunda auditoria - é a reforma
tributária.
Para aqueles que são antigos na carreira da magistratura - ou no
serviço público em geral, é fácil esquecer tudo isso, pois, se
implantada uma reforma "proporcional", será tão mais atingido
quanto mais novo seja o magistrado na carreira.
Que injustiça! São justamente os mais novos que estão na frente
de batalha da primeira instância. Igualmente aos mais antigos
entupidos de processos e de responsabilidade, mas com o
agravante da precária estrutura material e humana, e dos
vencimentos incompatíveis, enfrentando "no braço" poderes
descomunais. Tudo para fazer Justiça de forma isenta e
imparcial, predominantemente ao povo mais pobre - ao qual
interesses pouco confessáveis desejam desinformar sobre o
assunto.
O que quebrou e continua quebrando a previdência não são as
aposentadorias integrais, pois as próprias centrais sindicais
admitem que mais de 90% dos servidores já possuem salários no
limite do teto comum - falam em 95%.
A derrocada da Previdência deve-se sim às "Jorginas"
espalhadas pelo país, ao histórico
desvio dos recursos para outras finalidades
-
dizem que até para a construção de Itaipu,
aos
beneficiários fantasmas,
à introdução no sistema de
vários beneficiários que nunca contribuíram,
senão também à
má gestão dos recursos.
Está se anunciando a "reforma" de uma "casa" que pouco se
conhece.
Primeiro deve-se fazer uma grande auditoria nos benefícios da
previdência, devidos a ativos e inativos, aposentados pelo setor
público e pela iniciativa privada, iniciando-se pela notificação
pessoal de todos os beneficiários, para um recadastramento geral
- tal como efetivado com o CPF. Tudo sob pena de cancelamento do
benefício, até se averiguar a licitude do mesmo - e/ou a própria
existência do beneficiário.
Revista Consultor Jurídico, 21 de janeiro de 2003.