Yavé, o
Deus todo-poderoso, único e verdadeiro, criou o homem; tempos depois, devido à
perversão humana, destruiu a humanidade, deixando uma única família para
repovoar a terra e, novamente, escolheu uma família para formar seu povo santo,
que destruía os inimigos da verdade. Só recentemente, esse maravilhoso conto
foi desmascarado pelas análises arqueológicas.
“Das três ciências que estudam a Bíblia, a arqueologia tem se mostrado a mais
promissora. “Ela é a única que fornece dados novos”, diz o arqueólogo israelense
Israel Finkelstein, diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel
Aviv e autor do livro The Bible Unearthed (A Bíblia desenterrada, inédito no
Brasil), publicado no ano passado. A obra causou um choque em estudiosos de
arqueologia bíblica, porque reduz os relatos do Antigo Testamento a uma coleção
de lendas inventadas a partir do século VII a.C. O Gênesis, por exemplo, é visto
como uma epopéia literária. O mesmo vale para as conquistas de David e as
descrições do império de Salomão” (Superinteressante, julho/2002).
”Não há registro arqueológico ou histórico da existência de Moisés ou dos fatos
descritos no Êxodo. A libertação dos hebreus, escravizados por um faraó
egípcio, foi incluída na Torá provavelmente no século VII a.C., por obra dos
escribas do Templo de Jerusalém, em uma reforma social e religiosa. Para
combater o politeísmo e o culto de imagens, que cresciam entre os judeus, os
rabinos inventaram um novo código de leis e histórias de patriarcas heróicos que
recebiam ensinamentos diretamente de Jeová. Tais intenções acabaram batizadas de
“ideologia deuteronômica”, porque estão mais evidentes no livro Deuteronômio.
A prova de que esses textos são lendas estaria nas inúmeras incongruências
culturais e geográficas entre o texto e a realidade. Muitos reinos e locais
citados na jornada de Moisés pelo deserto não existiam no século XIII a.C.,
quando o Êxodo teria ocorrido. Esses locais só viriam a existir 500 anos
depois, justamente no período dos escribas deuteronômicos. Também não havia um
local chamado Monte Sinai, onde Moisés teria recebido os Dez Mandamentos. Sua
localização atual, no Egito, foi escolhida entre os séculos IV e VI d.C., por
monges cristãos bizantinos, porque ele oferecia uma bela vista. Já as Dez Pragas
seriam o eco de um desastre ecológico ocorrido no Vale do Nilo quando tribos
nômades de semitas estiveram por lá.
Vejamos agora o caso de Abraão, o patriarca dos judeus. Segundo a Bíblia, ele
era um comerciante nômade que, por volta de 1850 a.C., emigrou de Ur, na
Mesopotâmia, para Canaã (na Palestina). Na viagem, ele e seus filhos comerciavam
em caravanas de camelos. Mas não há registros de migrações de Ur em direção a
Canaã que justifiquem o relato bíblico e, naquela época, os camelos ainda não
haviam sido domesticados. Aqui também há erros geográficos: lugares citados
na viagem de Abraão, como Hebron e Bersheba, nem existiam então. Hoje, a
análise filológica dos textos indica que Abraão foi introduzido na Torá entre os
séculos VIII e VII a.C. (mais de 1 000 anos após a suposta viagem).
Então, como surgiu o povo hebreu? Na verdade, hebreus e canaanitas são o mesmo
povo. Por volta de 2000 a.C., os canaanitas viviam em povoados nas terras
férteis dos vales, enquanto os hebreus eram nômades das montanhas. Foi o
declínio das cidades canaanitas, acossadas por invasores no final da Idade do
Bronze (300 a.C. a 1000 a.C.), que permitiu aos hebreus ocupar os vales. Segundo
a Bíblia, os hebreus conquistaram Canaã com a ajuda dos céus: na entrada de
Jericó, o exército hebreu toca suas trombetas e as muralhas da cidade desabam,
por milagre. Mas a ciência diz que Jericó nem tinha muralhas nessa época. A
chegada dos hebreus teria sido um longo e pacífico processo de infiltração.
David e Salomão
Há pouca dúvida de que David e Salomão existiram. Mas há muita controvérsia
sobre seu verdadeiro papel na história do povo hebreu. A Bíblia diz que a
primeira unificação das tribos hebraicas aconteceu no reinado de Saul. Seu
sucessor, David, organizou o Estado hebraico, eliminando adversários e
preparando o terreno para que seu filho, Salomão, pudesse reinar sobre um vasto
império. O período salomônico (970 a.C. a 930 a.C.) teria sido marcado pela
construção do Templo de Jerusalém e a entronização da Arca da Aliança em seu
altar.
Não há registros históricos ou arqueológicos da existência de Saul, mas a
arqueologia mostra que boa parte dos hebreus ainda vivia em aldeias nas
montanhas no período em que ele teria vivido (por volta de 1000 a.C.) – assim,
Saul seria apenas um entre os muitos líderes tribais hebreus. Quanto a David, há
pelos menos um achado arqueológico importante: em 1993 foi encontrada uma pedra
de basalto datada do século IX a.C. com escritos que mencionam um rei David.
Por outro lado, não há qualquer evidência das conquistas de David narradas na
Bíblia, como sua vitória sobre o gigante Golias. Ao contrário, as cidades
canaanitas mencionadas como destruídas por seus exércitos teriam continuado sua
vida normalmente. Na verdade, David não teria sido o grande líder que a
Bíblia afirma. Seu papel teria sido muito menor. Ele pode ter sido o líder de um
grupo de rebeldes que vivia nas montanhas, chamados apiru (palavra de onde
deriva a palavra hebreu) – uma espécie de guerrilheiro que ameaçava as
cidades do sul da Palestina. Quanto ao império salomônico cantado em verso e
prosa na Torá hebraica, a verdade é que não foram achadas ruínas de arquitetura
monumental em Jerusalém ou qualquer das outras cidades citadas na Bíblia.
O principal indício de que as conquistas de David e o império de Salomão são,
em sua maior parte, invenções é que, no período em que teriam vivido, a
arqueologia prova que a cultura canaanita (que, segundo a Bíblia, teria sido
destruída) continuava viva. A conclusão é que David e Salomão teriam sido
apenas pequenos líderes tribais de Judá, um Estado pobre e politicamente
inexpressivo localizado no sul da Palestina.
Na verdade, o grande momento da história hebraica teria acontecido não no
período salomônico, mas cerca de um século mais tarde. Entre 884 e 873 a.C., foi
fundada Samária, a capital do reino de Israel, no norte da Palestina, sob a
liderança do rei israelita Omri. Enquanto Judá permanecia pobre e esquecida no
sul, os israelitas do norte faziam alianças com os assírios e viviam um período
de grande desenvolvimento econômico. A arqueologia demonstrou que os monumentos
normalmente atribuídos a Salomão foram, na verdade, erguidos pelos omridas. Ou
seja: o primeiro grande Estado judaico não teve a liderança de Salomão, e sim
dos reis da dinastia omrida.
Enriquecido pelos acordos comerciais com Assíria e Egito, o rei Ahab, filho de
Omri, ordena a construção dos palácios de Megiddo e as muralhas de Hazor, entre
outras obras. Hoje, os restos arqueológicos desses palácios e muralhas são o
principal ponto de discórdia entre os arqueólogos que estudam a Torá. Muitos
ainda os atribuem a Salomão, numa atitude muito mais de fé do que de rigor
científico, já que as datações mais recentes indicam que Salomão nunca ergueu
palácios.
Judá
Entender a história de Judá é fundamental para entender todo o Velho Testamento.
Até o século VIII a.C., Judá era apenas uma reunião de tribos vivendo numa
região desértica do sul da Palestina. Em 722 a.C., porém, os assírios
resolvem conquistar as ricas planícies e cidades de Israel – o reino do norte,
mais desenvolvido economicamente e mais culto. Judá, no sul, que não pareceu
interessar aos assírios, pôde continuar independente, desde que pagasse tributos
ao império assírio.
Assim, enquanto no norte acontece uma desintegração dos hebreus, levados para a
Assíria como escravos, no sul eles continuam unidos em torno do Templo de
Jerusalém. Judá beneficiou-se enormemente da destruição do reino do norte.
Jerusalém cresceu rapidamente e cidades como Lachish, que servia de passagem
antes de chegar a Jerusalém, foram fortificadas. Era o momento de Judá tomar a
frente dos hebreus. Para isso, precisaria de duas coisas: um rei forte e um
arsenal ideológico capaz de convencer as tribos do norte de que Judá fora
escolhida por Deus para unir os hebreus. Além disso, era preciso combater o
politeísmo que voltava a crescer no norte.
Josias foi o candidato a assumir a posição de rei unificador. Durante uma
reforma no Templo de Jerusalém, em seu governo, foi “encontrado” (na verdade,
não há dúvidas de que o livro foi colocado ali de propósito) o livro
Deuteronômio, com todos os ingredientes para um ampla reforma social e
religiosa. O livro possui até profecias que afirmam, por exemplo, que um rei
chamado Josias, da casa de David, seria escolhido por Deus para salvar os
hebreus. Ungido pelo relato do livro, o ardiloso Josias consegue seu objetivo de
centralizar o poder, mas acaba morto em batalha. Judá revolta-se contra os
assírios e o rei da Assíria, Senaqueribe, invade a região, destruindo Lachish e
submetendo Jerusalém. A destruição de Lachish, narrada com riqueza de detalhes
na Bíblia, também aparece num relevo encontrado em Nínive, a antiga capital
assíria. E as escavações comprovaram que a Bíblia e o relevo são fiéis ao
acontecido. Ou seja: nesse caso, a arqueologia provou que a Torá foi fiel aos
fatos” (Superinteressante, julho/2002).
Uma história cheia de erros, mencionando lugares inexistentes, como comprovado
hoje pela arqueologia, já não precisaria de mais nada para ser classificada como
mito. Por cima disso, parece que ninguém se deu conta de que, se Josias tivesse
realmente sido um rei escolhido por um deus todo-poderoso para unificar o seu
povo eleito, ele não teria sido morto pelo exército egípcio (II Crônicas, 35:
20-22), e o povo escolhido não teria sido submetido pelos assírios. O deus
todo-poderoso se mostrou impotente diante da Assíria. Só mesmo a fé, “certeza da
existência das coisas que se não vêem”, é capaz de manter em bilhões de mentes
humanas a convicção de que esses contos são “a verdade”.