O CRISTIANISMO E O
SEXO
O pecado original, a fonte do
mal do homem
(tela de Rafael) |
"Não, a
felicidade não é um corpo e por isso não se vê com os olhos." - Santo
Agostinho "Confissões", 397-400 d.C.
Um pouco antes de completar o penúltimo livro da suas "Confissões", terminado ao
redor do ano 400, S. Agostinho implorou a Deus que se fosse ele o encarregado de
escrever o Gênesis como anteriormente o fora Moisés, desejaria "receber de Vós
uma tal arte de expressão que...até aqueles que não podem compreender como é que
Deus cria... acreditassem nas minhas palavras." Foi atendido. Deus foi pródigo
com ele, mas sovina com os demais escritores cristãos, tornando-o o maior e
quase o único grande prosador do cristianismo até o surgimento de Pascal e do
Padre Vieira, treze séculos depois.
Não satisfeito com o dom das letras e com uma espantosa facilidade de
comunicação, que o colocou entre os imortais da literatura mundial, deu início,
logo depois, provavelmente em 401, à redação de uma leitura própria, muito sua,
do real significado do Gênesis - De Genesi ad Litteram - na qual ainda
demorou-se uns quinze anos. O que já havia esboçado nas "Confissões" então tomou
corpo. Fazia tempo que os primeiros evangelistas vinham hostilizando o sexo. Mas
foi com S. Agostinho que a questão tornou-se dominante, reveladora da sua idéia
do homem e da humanidade da qual o cristianismo, até os nossos dias, teima em
não abandonar.
O horror ao sexo
Impressionados pela liberalidade sexual e vocação orgiástica da elite romana,
ainda majoritariamente não-cristã, os apologistas daqueles primeiros tempos
fizeram questão de manter uma marcada distância em relação aos deuses e ritos
pagãos e, inspirados pelos solitários "homens do deserto", eremitas e
anacoretas, inauguraram uma política de completo repúdio ao sexo. Esse
radicalismo - enfatizado pelas epistolas de Paulinas - acentuou-se pela prática
da abstinência carnal, transformando-se num atrativo tão forte para novos
seguidores como o martírio dos crentes nas arenas romanas. Enquanto estes davam
suas entranhas para as feras devorarem, outros abandonavam as práticas sexuais
para sempre: o martírio e a castidade eram faces diferentes da mesma moeda.
A nudez é associada ao
pecado |
Havia
muito simbolismo atrás disso tudo. Não só a busca da perfeição atrás do "coração
simples", mas uma nova visão do ser humano, na qual ele somente poderia
manter-se na frescura com que saiu das mãos do criador permanecendo puro ou
intocado. Sendo igualmente - por meio da propaganda do ascetismo - uma forma
peculiar de manifestar abertamente seu protesto e desprezo pela época em que
viviam, por sua excessiva concupiscência, sua impiedade, libertinagem e
crueldade pagã.
O sexo para o cristão
O problema que enfrentavam os pregadores da nova fé era em relação ao casamento:
como conseguir manter um dos princípios básicos do cristianismo aceitos na forma
do "crescei e multiplicai-vos" sem considerar a atração ou o prazer sexual?
Tentado resolver esse conflito S. Agostinho, bispo de Hipona, no norte da
África, terminou por gerar sua doutrina sobre o casamento, o sexo e a privação
carnal. Donde viria, indagava ele, essa miséria que nos cerca, essa corrupção,
essas heresias e a crassa maldade? Existia na sociedade, concluiu ele, uma
mancha inapagável motivada pelo pecado original advindo do impulso sexual,
que atormentava o homem até a morte. Essa era a maldição que acompanhava Adão e
Eva e seus descendentes desde a queda do Paraíso.
O fruto proibido |
Para
S. Agostinho, na situação paradisíaca não havia tensão entre o impulso e o ato
sexual. Foi a partir da danação dos nossos pais primevos que essa desgraça
começou. Parecia-lhe que o casamento, a relação sexual e o Paraíso eram tão
incompatíveis como o Paraíso e a Morte. Desse modo, a sexualidade permanecia
como o indicador da queda do homem, do seu triste declínio da anterior situação
angelical, fazendo com que deslizasse para baixo, para a natureza física, e
desta para a sepultura. Esta certo que os casais deveriam preocupar-se
em gestar filhos, mas que o fizessem conscientes de estavam cometendo um ato de
rebaixamento. Era algo necessário mas humilhante, que deveria ser praticado
sob os acordes de uma intensa melancolia.
O sexo como culpa
Dessa forma, Agostinho introduziu entre os cristãos uma definitiva nódoa de
consciência culpada quando faziam sexo ou tinham sentimentos e impulsos
prazerosos. Trouxe para dentro dos lares e para os leitos conjugais uma
sombra de coisa maligna, de impureza, perversão e vício, que arruinou a vida de
incontáveis casais, para quem o sexo passou a ser associado a um "presente do
demônio", ou um discordium malum, um princípio de discórdia alojado no
interior de cada um desde a Queda. Opôs definitivamente a Carne a Deus!
Talvez uma das maneiras de entender-se essa obsessão dele, de Santo Agostinho,
em denunciar a sexualidade deve-se a ele ter sido um renegado do erotismo. Como
todo abjurado das suas paixões sensuais pregressas, votou intenso ódio ao que,
no passado, o atraiu, lamentando ter desperdiçado nele tanta energia. Ele mesmo
não negou ter sido dominado na sua juventude por uma intensa voluptuosidade,
pela lasciva, ao ponto de que, em determinado momento, quando pediu a Deus que o
fizesse casto, acrescentou... "mas não ainda!"
E foi mais longe ainda. A presença do impulso sexual nos seres humanos era a
marca da corrupção da nossa natureza. Tratava-se de uma perversidade intrínseca
que, tal uma erva daninha espalhada numa pradaria, jamais poderia ser removida
de todo. Santo Agostinho explicava a maldade como resultante desse tumor sensual
e dissoluto existente em todos nós, provocador de uma desordem crônica nas
nossas relações, que o tempo inteiro nos perturba com suas poluções, com seus
sonhos inconvenientes, incestuosos, inconfessáveis. Não havia dieta ou jejum que
nos salvasse ou nos libertasse dele, acompanhando-nos até na velhice e no
encarquilhamento, como uma cicatriz não sarada do nosso passado libidinoso e
pecador.
Juliano contesta Agostinho
Foi contra isso que mobilizou-se seu rival, Juliano, bispo de Eclanum que,
depois de 418, embrenhou-se numa ruidosa polêmica com ele. Juliano mostrou-se
indignado com as acusações de S. Agostinho ao sexo e ao casamento. Não podia
conceber, explicou ele, que o ato necessário a nossa reprodução fosse algo
demoníaco ou ter que ser praticado sobre o véu da vergonha e do enxovalhamento.
Afinal, eram "impulsos do nosso corpos feitos por Deus". O prazer era necessário
à reprodução, era a força que fundia as sementes masculinas e femininas num
amplo calor genitalis, útil a que ocorresse uma conjunção saudável e feliz. Nada
poderia haver de sinistro numa relação sexual bem realizada e completa. Bem ao
contrário, viu-a natural, saudável, como "o instrumento de eleição de qualquer
casamento.... merecedor de censura apenas em seus excessos."
Freud, mil e seiscentos
anos depois de Agostinho, livrou o homem ocidental da idéia do pecado. |
S.
Agostinho em várias cartas da sua imensa correspondência tentou amenizar as
objeções de Juliano, procurando mostrar-se menos radical do que nos seus
escritos anteriores. Porém, sabe-se que, para a posteridade, foi essa sua visão
trágica da existência - de sermos os infelizes portadores perpétuos do pecado
capital - (de origem paulina-agostiniana), que irá marcar de uma maneira
definitiva o cristianismo. E o sexo ficou, dali para sempre, visto como uma
transgressão, como uma obscenidade... quiçá um ardil satânico para atormentar
infinitamente a existência humana, até pelo menos o surgimento da psicanálise de
Sigmund Freud, no século XX, que aboliu, pelos menos entre as elites ocidentais,
com a idéia do pecado.
A fonte da polêmica
Essa polêmica encontra-se detalhada num dos capítulos, o 19º, do notável livro
"Corpo e Sociedade" (The Body and Society", Jorge Zahar Editores, RJ.1990) de
Peter Brown, um dos maiores historiadores da era clássica e professor da
Universidade de Princetown, sendo o exposto acima apenas uma reduzida amostra da
magistral reconstrução feita por ele da polêmica sobre a sexualidade nos tempos
do cristianismo primitivo, visto pelos seus apóstolos e seguidores, como
Tertuliano, Orígenes, Cipriano, Mani e João Clímaco, Ambrósio, Jerônimo e tantos
outros."
<http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/religiao_sexo.htm>
Nenhuma outra coisa que não a religião seria capaz de
levar uma pessoa de grande talento literário a uma
interpretação tão ridícula.
Veja a que contradições grotescas chegam as idéias do
grande Santo Agostinho em
O PECADO ORIGINAL
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PECADOS DOS
HOMENS DE DEUS