ENFRAQUECIMENTO DO ESTADO SOCIAL
Lealdade constitucional, Estado social e limite ao déficit
público
Antonio Baylos
As constituições democráticas promulgadas na Europa depois do
desaparecimento dos regimes fascistas partem do reconhecimento
do poder constituinte como momento fundador do modelo
democrático em um duplo sentido: como recusa ao autoritarismo
político e social do fascismo, e como pacto ou compromisso
constituinte refundador do Estado e da convivência civil. Este
consenso constituinte não só abrange os partidos políticos,
senão, de forma mais geral, os sujeitos sociais portadores de um
projeto de sociedade e o conjunto de cidadãos que estão
convocados a participar nesta definição constitucional através
da consulta popular ou referendaria.
A Constituição de um país requer, portanto, um amplo debate que
culmina em um consenso entre diferentes linhas ideológicas e
culturais que se replicam nas diferentes forças políticas que
coincidem neste projeto. Isto explica a “rigidez” do
constitucionalismo moderno, que prevê um procedimento especial
agravado para a reforma da Constituição e a instauração de um
controle de constitucionalidade das leis a cargo da jurisdição
ordinária e, em ultima instância, pelo Tribunal Constitucional.
Esta posição especial da Constituição como “um sistema de
meta-regras destinada a todos os poderes públicos, como garantia
dos direitos de todos” (Ferrajoli) pode ser claramente alterada
pelo projeto de reforma proposto pelo governo e aceita pelo PP
do artigo 134 da Constituição para impor um teto ao déficit
público de 0,40% do PIB infranqueável pelas estruturas do Estado
e suas respectivas Administrações, que entraria em vigor no ano
de 2018. Ao que parece, se trata de uma medida que será bem
recebida pelos “mercados” quando for renegociada a dívida
espanhola no inicio de outubro, e que tem sido recomendada pelos
governos francês e alemão sob o atrativo nome de “Regra de
Ouro”.
Como medida de política econômica européia, se trata de uma
decisão muito ligada a ortodoxia neoliberal, que, ao estar
desvinculada de outras medidas econômicas no espaço europeu,
como a reforma fiscal, o controle dos mercados financeiros, a
criação de eurobonos e tantas outras modificações
imprescindíveis para configurar uma verdadeira política
econômica e fiscal comum – sempre dentro da lógica do
capitalismo na era da globalização – coloca a Espanha em uma
situação de desigualdade permanente em um equilíbrio assimétrico
da chamada “governabilidade” européia. Mas, além disso, a
imposição de um teto constitucionalmente definido ao déficit
público confunde o que pode se tratar de uma medida de política
econômica conjuntural frente à crise – ou frente à avaliação dos
mercados financeiros da dúvida soberana – com a constituição de
um projeto permanente de regulação social e civil. Como medida
de política econômica – à margem das críticas absolutamente
generalizadas e razoáveis à mesma – a obsessão por reduzir o
déficit público só pode se formalizar em uma lei, mas nunca
integrar o marco constitucional de um Estado social democrático
de direita.
Porque as conseqüências de inserir esta medida no texto
constitucional não foram avaliadas convenientemente.
Desvirtua diretamente o modelo social e político que nossa
Constituição escolheu em 1978. E não está originado, como a
reforma de 1992 do artigo 13 CE, por uma modificação na
regulação constitucional européia em ampliar o direito ao voto
aos cidadãos da União Européia. Nem o Tratado de Lisboa nem a
Carta de direito fundamentais da União Européia avalizam esta
medida, pelo contrário, mantém a capacidade derivada do
principio de susbsidiariedade para que os Estados possam cumprir
por si mesmos as políticas sociais e os fins de proteção dos
direitos de liberdade, igualdade e solidariedade que constituem
esse acervo democrático comum europeu, o chamado “modelo social
europeu” que descansa nas constituições sociais de seus estados
membros.
A limitação do déficit público nos termos acordados está
diretamente relacionada com a cláusula social do artigo 1.1 da
Constituição espanhola, e esta, por sua vez, com o artigo 9.2 do
mesmo texto constitucional, que obriga os poderes públicos a um
trabalho permanente de eliminação das situações de desigualdade
econômica, social e cultural que dividem e fragmentam os
cidadãos de um país. Ao estabelecer de forma geral e absoluta
uma proibição para todos os organismos e administrações do
Estado de endividarem-se mais de 0,40% do PIB, está
condenando à imobilidade de uma boa parte da ação das políticas
públicas de igualdade e de nivelação social. Com isto,
está impedindo, na prática, a satisfação eficaz de muitos
direitos sociais reconhecidos na constituição para que se
materializem na ação pública e não para que os considerem
peças declamatórias sem nenhum resultado real em razão de uma
regra “técnica”, a impossibilidade de utilizar recursos
orçamentários públicos para pôr em prática atuações de nivelação
social constitucionalmente garantidas. O projeto de reforma
constitucional projetado reconhece explicitamente a repercussão
negativa desta regra “neutra” sobre a cláusula social do artigo
1.1 CE ao prever com exceção o pagamento de prestações sociais
como a do desemprego, estado de necessidade que tem que ser
protegido pela ação dos poderes públicos, como tantos outros
direito sociais – a proteção frente ao envelhecimento o
invalidez, a saúde, mas também à educação, a moradia, o
trabalho.
Definitivamente, o teto constitucional ao déficit público afeta
diretamente a função do Estado Social, porque nega aos
poderes públicos um dos mecanismos importantes para encarar, em
um momento histórico determinado, compromissos sociais que foram
reconhecidos como direito e que necessitam da atividade
prestacional do Estado e das Comunidades Autônomas para sua
materialização efetiva. O caso da dependência parece
suficientemente emblemático sobre o assunto.
Mas além da reforma constitucional, cuja proposição de lei se
registrará esta semana, para que o Congresso possa aprovar em 30
de agosto sua remissão ao senado em 1 de setembro, onde
possivelmente se adotará o texto da mesma sem problemas, busca
expressamente que não haja nenhum debate publico sobre o
conteúdo e as conseqüências da mesma. Isto implica que uma
mudança na Constituição possa ser realizada em férias, sem que
os cidadãos possam nem sequer reagir frente a uma modificação
extremamente importante para as condições de sua convivência
social, e sem que desde logo possam participar mediante seus
votos na aceitação ou negação de tal medida. Chama-se “reforma
constitucional Express”, mas este termo não oculta sua vocação
antidemocrática. Desta forma, se está violando uma regra básica
do estado democrático de direita ao impedir conscientemente um
debate público e cidadão sobre um assunto de interesse geral com
incidência imediata na validade das políticas públicas sociais e
sobre a própria eficácia dos direitos sociais e coletivos. É uma
reforma que sufoca a democracia e desconfia claramente do
fundamento democrático e popular que sustenta a estrutura de
nossa Constituição.
A reforma não pode prosperar por lealdade constitucional. Que
não impõe só o respeito à unidade da Espanha e suas instituições
simbólicas, mas sim ao mais escrupuloso cumprimento das
garantias democráticas e a preservação obrigatória da função do
Estado social como legitimador da própria convivência cidadã. Os
próprios partidos políticos proponentes – PP e PSOE – mas
fundamentalmente este último, que manteve a superioridade da
constituição sobre as atuações políticas partidaristas, devem
revisar suas posições. No parlamento, os grupos minoritários,
tanto de esquerda, como nacionalistas, e uma parte importante do
próprio grupo socialista, deveriam manifestar sua oposição a
esta reforma por lealdade constitucional. Felizmente alguns –
muito poucos, para a consternação dos democratas – já o fizeram.
É preciso esperar que as vozes da oposição sigam aumentando.
Mas este debate não é somente parlamentar, nem pode se encerrar
no circuito político-eleitoral. Os sindicatos, como expressão
potente do interesse coletivo dos trabalhadores e da maioria da
sociedade, têm que exigir de forma contundente ao governo um
passo atrás sobre esta decisão antidemocrática e antissocial que
rompe com o consenso constituinte do texto de 1978 que custou
tanto sofrimento a várias gerações de trabalhadores e
trabalhadoras espanholas que com sua luta permitiram a
instauração de uma democracia. E os fenômenos coletivos de
agregação de interesses cidadãos difusos que estão sendo
expressados em movimentos tão decisivos como o 15-M, tem que
redobrar sua pressão contra este autentico golpe contra o
estado social e democrático que os espanhóis decidiram
majoritariamente como forma de regular as relações sociais deste
país. Por lealdade constitucional, todos estamos implicados e
comprometidos em repelir esta reforma vergonhosa da
Constituição.
Antonio Baylos é professor de Direito do
Trabalho e Trabalho Social, na Universidade de Castilla-La
Mancha, Espanha. Tradução de Jaqueline Sordi.
http://sul21.com.br/jornal/2011/09/lealdade-constitucional-estado-social-e-limite-ao-deficit-publico/
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