ESCRAVIDÃO MODERNA NO BRASIL
O que é trabalho escravo
Escravidão contemporânea é o trabalho degradante que envolve cerceamento da
liberdade.
A assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, representou o fim do direito
de propriedade de uma pessoa sobre a outra, acabando com a possibilidade de
possuir legalmente um escravo no Brasil. No entanto, persistiram situações que
mantêm o trabalhador sem possibilidade de se desligar de seus patrões. Há
fazendeiros que, para realizar derrubadas de matas nativas para formação de
pastos, produzir carvão para a indústria siderúrgica, preparar o solo para
plantio de sementes, entre outras atividades agropecuárias, contratam
mão-de-obra utilizando os contratadores de empreitada, os chamados "gatos". Eles
aliciam os trabalhadores, servindo de fachada para que os fazendeiros não sejam
responsabilizados pelo crime.
Esses gatos recrutam pessoas em regiões distantes do local da prestação de
serviços ou em pensões localizadas nas cidades próximas. Na primeira abordagem,
mostram-se agradáveis, portadores de boas oportunidades de trabalho. Oferecem
serviço em fazendas, com garantia de salário, de alojamento e comida. Para
seduzir o trabalhador, oferecem "adiantamentos" para a família e garantia de
transporte gratuito até o local do trabalho.
O transporte é realizado por ônibus em péssimas condições de conservação ou por
caminhões improvisados sem qualquer segurança. Ao chegarem ao local do serviço,
são surpreendidos com situações completamente diferentes das prometidas. Para
começar, o gato lhes informa que já estão devendo. O adiantamento, o transporte
e as despesas com alimentação na viagem já foram anotados em um "caderno" de
dívidas que ficará de posse do gato. Além disso, o trabalhador percebe que o
custo de todos os instrumentos que precisar para o trabalho - foices, facões,
motosserras, entre outros - também será anotado no caderno de dívidas, bem como
botas, luvas, chapéus e roupas. Finalmente, despesas com os improvisados
alojamentos e com a precária alimentação serão anotados, tudo a preço muito
acima dos praticados no comércio.
Convém lembrar que as fazendas estão distantes dos locais de comércio mais
próximos (o trabalhador é levado para longe de seu local de origem e, portanto,
da rede social na qual está incluído. Dessa forma, fica em um estado de
permanente fragilidade, sendo dominado com maior facilidade), sendo impossível
ao trabalhador não se submeter totalmente a esse sistema de "barracão", imposto
pelo gato a mando do fazendeiro ou diretamente pelo fazendeiro.
Se o trabalhador pensar em ir embora, será impedido sob a alegação de que está
endividado e de que não poderá sair enquanto não pagar o que deve. Muitas vezes,
aqueles que reclamam das condições ou tentam fugir são vítimas de surras. No
limite, podem perder a vida.
Condições de trabalho
Produtores rurais das regiões com incidência de trabalho escravo afirmam, com
freqüência, que esse tipo de relação de serviço faz parte da cultura ou
tradição. Contudo, mesmo que a prática fosse comum em determinada região - o que
não é verdade, pois é utilizada por uma minoria dos produtores rurais -, jamais
poderia ser tolerada.
A Convenção nº 29 da OIT de 1930, define sob o caráter de lei internacional o
trabalho forçado como "todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a
ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente." A mesma
Convenção nº 29 proíbe o trabalho forçado em geral incluindo, mas não se
limitando , à escravidão. A escravidão é uma forma de trabalho forçado.
Constitui-se no absoluto controle de uma pessoa sobre a outra, ou de um grupo de
pessoas sobre outro grupo social.
Trabalho escravo se configura pelo trabalho degradante aliado ao cerceamento da
liberdade. Este segundo fator nem sempre é visível, uma vez que não mais se
utilizam correntes para prender o homem à terra, mas sim ameaças físicas, terror
psicológico ou mesmo as grandes distâncias que separam a propriedade da cidade
mais próxima.
Alojamento
O tipo de alojamento depende do serviço para o qual o trabalhador foi aliciado.
As piores condições são, normalmente, as relacionadas com a derrubada de
floresta nativa devido à inacessibilidade do local e às grandes distâncias dos
centros urbanos. Como não há estrutura nenhuma e o proprietário não
disponibiliza alojamentos, muito menos transporte para que o trabalhador durma
próximo da sede da fazenda, a saída é montar barracas de lona ou de folhas de
palmeiras no meio da mata que será derrubada. Os trabalhadores rurais ficam
expostos ao sol e à chuva.
Pedro, de 13 anos de idade, perdeu a conta das vezes em que passou frio,
ensopado pelas trovoadas amazônicas, debaixo da tenda de lona amarela que servia
como casa durante os dias de semana. Nem bem amanhecia, ele engolia café preto
engrossado com farinha de mandioca, abraçava a motosserra de 14 quilos e
começava a transformar a floresta amazônica em cerca para o gado do patrão. Foi
libertado em uma ação do grupo móvel no dia 1o de maio de 2003 em uma fazenda, a
oeste do município de Marabá, Sudeste do Pará.
De acordo com fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, uma das fazendas
vistoriadas contava com excelentes alojamentos de alvenaria munidos de
eletrodomésticos para serem mostrados aos fiscais. "Mas os escravos estavam em
barracos plásticos, bebendo água envenenada e foram mantidos escondidos em
buracos atrás de arbustos até que nós saíssemos. Como passamos três dias sem
sair da fazenda, os 119 homens começaram a ‘brotar' do chão e nos procuraram
desesperados, dizendo que não eram bichos".
Outro caso flagrado pelo Grupo Móvel: a equipe de fiscalização já libertou peões
que ficavam alojados no curral, dormindo com o gado à noite, em uma propriedade,
em Buriticupu (MA), no dia 08 de abril de 2001, segundo os relatórios do
Ministério do Trabalho e Emprego.
Saúde
Na fronteira agrícola, é comum que doenças tropicais como malária e febre
amarela sejam endêmicas, além de exibir alta incidência de algumas moléstias que
estão em fase de desaparecimento em outras regiões, como a tuberculose. Quando
ficam doentes, os trabalhadores escravizados, na maioria das vezes, são deixados
à própria sorte pelos "gatos" e os donos das fazendas. Os que conseguem andar
caminham quilômetros até chegar a um posto de saúde, enquanto os casos mais
graves podem permanecer meses em estado de enfermidade até que melhorem, apareça
alguém que possa levá-los para a cidade ou, na pior das hipóteses, venham a
falecer.
Devido aos altos índices de desemprego na região, há um grande contingente de
pessoas em busca de um serviço que possa prover o seu sustento e o de sua
família. Essa grande quantidade de mão-de-obra ociosa é um exército de
reposição. Uma pessoa doente torna-se um estorvo, apenas uma boca a ser
alimentada, pois fica alienada da única coisa que interessa ao dono da terra,
que é sua força de trabalho. Por isso, não são raros os relatos de pessoas que
foram simplesmente mandadas embora após sofrerem um acidente durante o serviço.
Luís deixou sua casa em uma favela na periferia da capital Teresina e foi se
aventurar no Sul do Pará para tentar impedir a fome de sua esposa e de seu filho
de quatro meses. Logo chegando, trabalhou em uma serraria, que transformava a
floresta em tábuas, onde perdeu um dedo da mão quando a lâmina giratória desceu
sem aviso. "Me deram duas caixas de comprimido: uma para desinflamar e outra
para tirar a dor, e me mandaram embora", conta. Segundo Luís, os patrões não
queriam ter dor de cabeça com um empregado ferido. Ele foi libertado de uma
fazenda no Sul do Pará, em fevereiro de 2004, durante uma ação de um grupo móvel
de fiscalização.
A pecuária é uma das principais atividades que utilizam trabalho escravo, para
tarefas como derrubada de mata para abertura ou ampliação da pastagem e o
chamado "roço da juquira" - que é retirada de arbustos, ervas daninhas e outras
plantas indesejáveis. Para este último, além da poda manual, utiliza-se a
aplicação de veneno. Contudo, não são fornecidos aos aplicadores equipamentos de
segurança recomendados pela legislação, como máscaras, óculos, luvas e roupas
especiais. A pele dos trabalhadores, ao fim de algumas semanas, está carcomida
pelo produto químico, com cicatrizes que não curam, além de tonturas, enjôos e
outros sintomas de intoxicação.
Carlos, 62 anos, foi encontrado doente na rede de um dos alojamentos de uma
fazenda de gado, em Eldorado dos Carajás, e internado às pressas. Tremia havia
três dias, não de malária ou de dengue, mas de desnutrição. No hospital, contou
que estava sem receber fazia três meses, mesmo já tendo finalizado o trabalho
quase um mês antes. O gato teria dito que descontaria de seu pagamento as
refeições feitas durante esse tempo parado. Foi libertado por um Grupo Móvel de
Fiscalização em dezembro de 2001.
Saneamento
Não há poços artesianos para garantir água potável com qualidade, muito menos
sanitários para os trabalhadores. O córrego de onde se retira a água para
cozinhar e beber muitas vezes é o mesmo em que se toma banho, lava-se a roupa,
as panelas e os equipamentos utilizados no serviço. Vale lembrar que as chuvas
carregam o veneno aplicado no pasto para esses mesmos córregos.
Alimentação
Os próprios peões usam o termo "cativo" para designar o contrato em que um
trabalhador tem descontado o valor da comida de sua remuneração. O dever de
honrar essa dívida de natureza fraudulenta com o "gato" ou o dono da fazenda é
uma das maneiras de se escravizar uma pessoa no Brasil. Ao passo que o contrato
em que o trabalhador recebe a comida sem desconto na remuneração é chamado de
"livre".
A comida resume-se a feijão e arroz. A "mistura" (carne) raramente é fornecida
pelos patrões. Em uma fazenda em Goianésia, Pará, as pessoas libertadas em
novembro de 2003 eram obrigadas a caçar tatu, paca ou macaco se quisessem carne.
Enquanto isso, mais de 3 mil cabeças de gado pastavam na fazenda, que se
espreguiça por cerca de 7,5 mil hectares de terra. "Tem vez que a gente passa
mais de mês sem carne", lembra Gonçalves, um peão que prestava serviço na
fazenda.
Em muitas fazendas, a única ocasião em que se come carne é quando morre um boi.
Na fazenda em que Luís foi libertado, em fevereiro de 2004, a única "mistura"
que estava à disposição dos libertados era carne estragada, repleta de vermes.
Maus tratos e violência
Não é o objetivo deste texto analisar as histórias de humilhação e sofrimento
dos libertados. Mas vale ressaltar que há em todas elas uma presença constante
de humilhação pública e de ameaças, levando o trabalhador a manter-se em um
estado de medo constante.
Muitas vezes, quando peões reclamam das condições ou querem deixar a fazenda,
capatazes armados os fazem mudar de idéia. "A água parecia suco de abacaxi, de
tão suja, grossa e cheia de bichos." Mateus, natural do Piauí, e seus
companheiros usavam essa água para beber, lavar roupa e tomar banho. Foi
contratado por um gato para fazer "roça de mata virgem" - limpar o caminho para
que as motosserras pudessem derrubar a floresta e assim dar lugar ao gado - em
uma fazenda na região de Marabá, Sudeste do Pará. Contou ao Grupo Móvel de
Fiscalização que, no dia do acerto, não houve pagamento. Ele reclamou da água na
frente dos demais e por causa disso foi agredido com uma faca. "Se não tivesse
me defendido com a mão, o golpe tinha pegado no pescoço", conta, mostrando um
corte no dedo que lhe tirou a sensibilidade e o movimento. "Todo mundo viu, mas
não pôde fazer nada. Macaco sem rabo não pula de um galho para outro." Mateus
foi instruído pelo gerente da fazenda a não dar queixa na Justiça.
"Sempre que vejo um trabalhador cego ou mutilado pergunto quanto o patrão lhe
pagou pelo dano e eles têm me respondido assim: ‘um olho perdido - R$ 60,00. Uma
mão perdida - R$ 100,00'. E assim por diante. Estranho é que o corpo com partes
perdidas tem preço, mas se a perda for total não vale nada", afirma um
integrante da equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego.