Por determinação do papa Bento XVI, o Vaticano reavalia a condenação de Cícero
Romão Batista, o adorado e polêmico padre cearense que chegou a ser excomungado
por Lira Neto
Uma reviravolta está em andamento nos bastidores da Igreja Católica. Um padre
polêmico, que viveu sob o signo da controvérsia e morreu proscrito, condenado
pelo Santo Ofício, pode vir a ser declarado santo. O sacerdote brasileiro Cícero
Romão Batista, acusado no fim do século 19 de proclamar falsos milagres, de
incentivar o fanatismo popular e de se beneficiar financeiramente da devoção
extremada de seus milhões de seguidores, está sendo objeto de novos estudos e
investigações na Santa Sé. As longas cartas e as pilhas de documentos oficiais
trocados na última década entre o Vaticano e o Brasil indicam que, talvez bem
mais cedo do que inicialmente se pudesse imaginar, o célebre padre Cícero - o "Padim
Ciço", como é chamado pela legião de romeiros que o venera - deverá ser
absolvido de todas as incriminações que recaem sobre sua figura histórica. Entre
bispos e cardeais, aqui ou em Roma, uma palavra é repetida sempre que ele é o
assunto: "reabilitação".
Reabilitar padre Cícero significaria anistiá-lo, post-mortem, das penas que lhe
foram impostas, em vida, pelo Santo Ofício. Em decorrência das acusações de que
era um rebelde, um desobediente à hierarquia católica e um semeador de
fanatismos, ele foi alvo de um inquérito eclesiástico que terminou por proibi-lo
de rezar missas, de confessar fiéis e de ministrar sacramentos como o batismo e
o matrimônio. Tornou-se, então, um pária da fé. Apesar de idolatrado pelos cerca
de 2,5 milhões de peregrinos que acorrem todos os anos à cidade cearense de
Juazeiro do Norte para reverenciar sua memória, Cícero continuou sendo
oficialmente considerado um padre maldito, renegado pela Igreja Católica.
Agora, a chamada reabilitação seria o primeiro passo para uma posterior
beatificação, ou seja, o reconhecimento canônico de que o homem Cícero Romão
Batista teria vivido na plenitude das virtudes cristãs, sendo um
"bem-aventurado", o que resultaria na consequente autorização para o culto
público a seu nome. Contudo, há os que apostem mais longe e acreditem que,
devido às milhares de graças que os romeiros dizem ter alcançado por intercessão
do padre Cícero - cegos que teriam voltado a ver, aleijados que andaram
novamente, loucos que teriam recuperado o juízo -, o caso, a médio prazo, deverá
evoluir da simples beatificação para a efetiva canonização, quando então ele
seria elevado à honra dos altares de toda a Igreja. Esse processo burocrático,
como ocorreu com Frei Galvão (1739-1822), o primeiro santo nascido no Brasil, é
complexo e pode levar vários anos. Entre os religiosos simpáticos à reabilitação
do Padim, um nome se destaca: o de Joseph Ratzinger. Ele mesmo. O cardeal alemão
que em 2005 se tornou papa e hoje atende pelo nome de Bento XVI.
Ordem papal
Foi o próprio Ratzinger que, em 2001, encaminhou uma carta à Nunciatura
Apostólica no Brasil - a "embaixada" do Vaticano no país - tratando abertamente
da possível anistia póstuma do padre Cícero. O cardeal era o então prefeito da
Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (como desde 1967 passou a ser
conhecido o antigo Santo Ofício, antes denominado Inquisição Romana, a mesma
instituição que, um dia, julgou e condenou Cícero). Outro decisivo apoio à causa
da reabilitação é manifestado pelo cardeal italiano Tarcísio Bertone, atual
secretário de Estado do Vaticano, que já esteve pessoalmente em Juazeiro e
testemunhou as gigantescas romarias que fazem daquela cidade o maior centro de
peregrinação cristã no Brasil, abaixo apenas de Aparecida (SP), onde se
reverencia a santa padroeira do país.
Uma circunstância histórica motivou a carta de Ratzinger e tem feito o processo
de reabilitação caminhar com maior celeridade: a Igreja Católica não pretende
mais assistir de braços cruzados à verdadeira sangria de fiéis que vem sofrendo
nos últimos anos. A ofensiva e o crescimento vertiginoso das concorrentes
evangélicas, especialmente a Igreja Universal do Reino de Deus, têm sido motivo
de aguda preocupação para o clero. "Maior nação católica do planeta", o Brasil é
também o país em que o catolicismo mais perde fiéis para os apelos dos pastores
neopentecostais.
Em uma correspondência oficial a Bento XVI, escrita em 30 de maio de 2006, dom
Fernando Panico, bispo do Crato (a diocese à qual está subordinada Juazeiro do
Norte), explicitou a questão, com todas as letras: "Posso testemunhar,
Santidade, que as nossas romarias são um baluarte da fé dos pobres, filhos
queridos da Igreja Católica, cuja devoção contém e freia, por assim dizer, o
avanço das seitas evangélicas na nossa região".
Para a Igreja, absolver Cícero seria uma forma de não deixar os milhões de
devotos e romeiros nordestinos à margem da liturgia. Em entrevista ao jornal The
New York Times, publicada em março de 2005, o mesmo dom Fernando foi taxativo:
"O padre Cícero é um antivírus contra os evangélicos".
Fazedor de milagres
Toda a história pessoal de Cícero Romão Batista está permeada de mistérios,
ambiguidades e contradições. Amado e odiado em igual medida por seus
contemporâneos, depois de morto - e talvez ainda mais a partir daí - ele
continua a provocar sentimentos idênticos de adoração e repulsa.
Nascido na cidade cearense do Crato em 1844, ordenado padre em 1870, Cícero
viveu e cresceu na confluência de dois mundos. De um lado, o universo mágico do
misticismo sertanejo, no qual a crença em lobisomens, almas penadas e
mulas-sem-cabeça convivia com a festiva devoção aos santos padroeiros e com as
advertências apocalípticas dos profetas populares, que pregavam o fim dos
tempos. Do outro lado, o mundo da fé ritualizada, da disciplina clerical e da
submissão cristã com a qual foi educado e doutrinado no seminário. Com um pé no
maravilhoso, outro na ascese, Cícero protagonizou uma biografia acidentada,
recheada de episódios mirabolantes que mais parecem beirar a ficção (veja a
linha do tempo).
Entretanto, até os 45 anos de idade, sua vida nada teve de extraordinária. Em
1889, Cícero era um simples padre de aldeia, rezando missa numa minúscula
capelinha do então povoado do Juazeiro, a 600 quilômetros de Fortaleza, quando
um fenômeno misterioso chamou a atenção dos sertanejos, da Igreja e da imprensa.
Ao ministrar a comunhão a uma beata - a humilde costureira e doceira Maria de
Araújo -, a hóstia consagrada teria se transformado em sangue. "Não posso
duvidar, porque vi muitas vezes", escreveu Cícero a dom Joaquim José Vieira,
bispo do Ceará.
Os jornais abriram manchetes para noticiar o fenômeno e os sertanejos caíram de
joelhos diante do proclamado milagre. A Igreja, porém, acusou Cícero e a beata
de fraude. "Se Maria de Araújo recebe realmente provas do céu, que as vá gozando
só, sem perturbar a boa ordem da diocese", desdenhou o bispo Vieira.
Fato ou embuste, o caso é que o padre e seus adeptos evocaram em sua defesa - e
até hoje evocam - uma série de fenômenos mais ou menos semelhantes, devidamente
chancelados pelo Vaticano sob a classificação genérica de "milagres
eucarísticos". Mas uma frase atribuída ao então reitor do Seminário da Prainha,
o padre Pierre-Auguste Chevalier, revelaria a dificuldade do clero tradicional
em aceitar as manifestações da fé popular: "Jesus Cristo não iria sair da Europa
para fazer milagres no sertão do Brasil", teria tripudiado o francês.
Chefe político
O episódio da hóstia que diziam se transformar em sangue rendeu a Cícero a
admiração dos milhares de peregrinos, que desde então não mais pararam de chegar
a Juazeiro para testemunhar a suposta maravilha. Mas também significou para o
padre uma longa via-crúcis de indisposições perante as autoridades eclesiásticas
da época (veja as páginas 32 e 33).
Banido pelo clero, Cícero passou a ocupar a posição de mártir no imaginário
coletivo, ao mesmo tempo que começou a desfrutar de uma enorme notoriedade e de
um imenso poder junto ao povo mais simples do sertão, vítimas históricas da seca
e do descaso governamental. Aquela gente, sem perspectivas, sem dinheiro e sem
chão, cada vez mais se identificava com o sacerdote que nunca foi propriamente
um grande orador, mas em compensação sabia falar a mesma língua deles,
chamando-os de "amiguinhos", ouvindo-lhes as queixas, distribuindo prédicas e
conselhos.
Moralista severo, Cícero pregava contra os amancebados, os festejos pagãos e o
desregramento das famílias. Numa terra em que imperava a lei do punhal e do
bacamarte, seu lema mais famoso conclamaria os pecadores ao arrependimento:
"Quem bebeu não beba mais, quem roubou não roube mais, quem matou não mate
mais", costumava dizer.
Quando não pôde mais celebrar batismos, ele próprio aceitou apadrinhar inúmeras
crianças, vindo daí o título de "padrinho padre Cícero", que na corruptela da
linguagem popular resultou Padim Pade Ciço.
"Em cada casa um oratório, em cada quintal uma oficina", pregava ele, atraindo
trabalhadores, agricultores e artesãos de todo o Nordeste, que passaram a se
fixar e aos poucos transformaram o arrabalde em um importante centro
manufatureiro. O povoado virou cidade autônoma e, em 1911, Cícero foi nomeado o
primeiro prefeito de Juazeiro. Líder religioso, tornou-se também chefe político,
igualmente polêmico e contraditório. Ao mesmo tempo que pregava aos "náufragos
da vida", como se referia aos menos favorecidos, estabeleceu alianças com as
elites poderosas.
A Santa Sé delibera
Entre 2001 e 2006, uma comissão multidisciplinar de estudos se debruçou sobre a
vasta documentação relativa ao padre, em arquivos do Brasil e do Vaticano.
Coordenada pelo bispo do Crato, dom Fernando Panico, tal comissão foi composta
por especialistas de várias áreas do conhecimento: antropologia, filosofia,
história, psicologia, sociologia e teologia. A finalidade era trazer à luz novos
documentos que servissem para tentar responder a uma questão que sempre
acompanhou o nome de Cícero: quem afinal foi esse homem, acusado de espertalhão
por muitos, aclamado como visionário por outros tantos?
O relatório final da comissão foi entregue em maio de 2006 na Santa Sé. Junto,
uma coleção de 11 volumes reunia as transcrições das centenas de cartas trocadas
entre os principais personagens da história do padre. Um volume à parte levava
cerca de 150 mil assinaturas de populares em prol da reabilitação, às quais se
somava um abaixo-assinado no qual se lia o nome de 253 bispos brasileiros
favoráveis à causa. Em complemento à papelada, a carta de dom Fernando ao papa:
"Venho com toda esperança e humildade suplicar a Vossa Santidade que se digne
reabilitar canonicamente o padre Cícero Romão Batista, libertando-o de qualquer
sombra e resquício das acusações por ele sofridas",
É sobre esse vasto material que ora se debruçam os cardeais da Congregação para
a Doutrina da Fé, a quem caberá decidir pela pertinência ou não da tese da
reabilitação. A última palavra estará reservada ao próprio Bento XVI. Mas,
enquanto a Santa Sé delibera, há indícios que ajudam a antecipar a possível
resposta.
Em setembro de 2008, a igreja de Nossa Senhora das Dores - o templo que Cícero
construiu em Juazeiro e no qual depois se viu impedido de rezar missa - foi
elevado pelo Vaticano à categoria de basílica. Com isso, o brasão de Bento XVI
foi sintomaticamente colocado à porta de entrada, bem à vista dos romeiros que
chegam para louvar o Padim. No templo em que o padre está enterrado, a capela de
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também em Juazeiro, foi autorizada a
instalação de um vitral multicolorido em que se destaca a imagem de Cícero, ao
lado de outros santos oficiais. Setenta e cinco anos após a morte do sacerdote,
a Igreja se prepara para absolver Cícero Romão Batista.
Santo sertanejo
A polêmica trajetória de Padre Cícero
1844
Cícero Romão Batista nasce na cidade do Crato (CE).
1870
Cícero é ordenado padre, apesar das reservas do reitor do seminário, que o
julgava um aluno "teimoso" e "dono de ideias confusas".
1872
Sem ter recebido nenhuma paróquia, o jovem padre aceita o convite de moradores
para rezar a missa de Natal no pequeno povoado de Juazeiro, vizinho ao Crato.
Segundo ele, um sonho faz com que continue a morar ali para sempre. Jesus teria
pedido a Cícero que "tomasse conta" dos pobres do local.
1889
Acontece o chamado "milagre do Juazeiro".
1908
Atraído por notícias da existência de uma valiosa mina de cobre na região, chega
a Juazeiro um baiano misterioso: Floro Bartolomeu. Médico, rábula e garimpeiro,
ele passa a ser o principal braço político de Cícero.
1909
Começa a circular O Rebate, primeiro jornal de Juazeiro, fundado para defender a
tese da emancipação do povoado em relação ao Crato. Floro Bartolomeu é um dos
editores.
1910
Morre misteriosamente o professor José Marrocos, um ex-seminarista que exerce
grande influência sobre Cícero. Floro é acusado de tê-lo envenenado, mas nunca
se prova nada a esse respeito.
1911
Juazeiro se emancipa. Cícero, filiado ao Partido Republicano Conservador, é
nomeado primeiro prefeito do novo município. Permanecerá quase duas décadas no
cargo, sendo reeleito seguidamente. Na data da posse, sela um pacto de paz com
os principais coronéis da região, no qual todos prometem parar as animosidades
mútuas.
1913
Em acordo com o governo federal e com o aval de Cícero, Floro viaja ao Rio de
Janeiro para tramar a queda do então presidente (cargo igual ao de governador)
do Ceará, Franco Rabelo. De volta, Floro depõe as autoridades municipais e
instala uma Assembleia estadual paralela para caracterizar a duplicidade de
poderes e provocar uma intervenção federal.
1914
O governo estadual reage. Manda tropas para atacar Juazeiro. Cícero segue o
conselho de um sobrevivente de Canudos e pede aos moradores que cavem um fosso
gigantesco em torno da cidade: o "Círculo da Mãe de Deus". Com isso, o ataque
fracassa. Juazeiro parte para a ofensiva. Comandado por Floro, um exército de
jagunços e cangaceiros toma o Crato e várias outras cidades cearenses, cercando
Fortaleza. O governo federal decreta a intervenção no Ceará. Cícero é nomeado
vice-presidente do estado.
1926
A Coluna Prestes entra no Ceará. Cícero escreve carta aberta a Prestes,
conclamando-o à rendição. Floro tem a ideia de convocar Lampião para integrar o
chamado "Batalhão Patriótico", organizado para dar combate à Coluna. É quando o
cangaceiro recebe a patente de capitão e passa a assinar "Capitão Virgulino". No
mesmo ano, Cícero é eleito deputado federal, mas não assume o cargo, por causa
da idade avançada.
1930
Vitória da revolução que leva Getúlio Vargas à Presidência da República. Cícero
escreve uma carta aberta ao povo, classificando os revolucionários de
"mensageiros de Satanás".
1934
Cícero faz uma grande doação ao bispado do Crato, tornando-o o principal
beneficiário de sua herança. Em 20 de julho, o padre morre aos 90 anos.
A via-crúcis do padre Cícero
A hóstia transformada em sangue fez sua glória e desgraça
I
Em 1 de março de 1889, sexta-feira da Quaresma, o padre Cícero oferece a
comunhão à beata Maria de Araújo e a hóstia se transforma em sangue. O fenômeno
teria ocorrido por semanas seguidas, até 15 de agosto, dia da Ascensão de Nossa
Senhora. Os paninhos manchados de sangue são adorados como relíquias sagradas.
II
A primeira grande romaria a Juazeiro ocorre em 7 de julho de 1889, organizada
pelo reitor do seminário do Crato, Francisco Monteiro. Três mil peregrinos
chegam ao povoado, que tinha pouco mais de 400 moradores. Segundo o reitor, era
o sangue de Jesus que jorrava nas comunhões da beata. O milagre vira notícia na
imprensa de todo o país.
III
O bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, censura Cícero e o monsenhor Monteiro
por proclamarem milagres ainda não investigados pela Santa Sé. Em julho de 1891,
o bispo cria uma comissão de inquérito eclesiástico, formada pelos padres
Francisco Antero e Clycério da Costa Lobo. A ordem é desmascarar um possível
embuste.
IV
Em setembro de 1891, os padres Clycério e Antero vão a Juazeiro investigar o
fenômeno. Segundo relatório levado ao bispo, por várias vezes eles dizem ter
testemunhado a transformação da hóstia em sangue e negam que se trate de uma
farsa. Em interrogatório, a beata Maria de Araújo jura que fala com Jesus e que
viaja, em espírito, ao Céu e ao Inferno.
V
Em abril de 1892, inconformado, o bispo envia uma nova comissão a Juazeiro,
coordenada pelo padre Alexandrino de Alencar. Ordena-se que a beata não feche a
boca durante a comunhão e a suposta transformação não ocorre.
Cícero é acusado
oficialmente de embuste e a beata, de mentirosa. Ela é enclausurada e punida com
bolos de palmatória.
VI
Em julho de 1892, o padre Antero viaja ao Vaticano em defesa de Cícero. O Santo
Ofício examina o caso. Em agosto, o bispo cearense proíbe Cícero de rezar
missas, pregar aos fiéis, confessar e ministrar sacramentos. Em 1894, o Santo
Ofício condena os fatos como "prodígios vãos e supersticiosos. Os padres adeptos
do milagre se retratam. Menos Cícero.
VII
Em 1898, Cícero vai ao Vaticano se defender. É interrogado e depois recebido
pelo papa Leão XIII. O Santo Ofício absolve Cícero das censuras, desde que ele
guarde silêncio sobre o caso. O padre jura submissão, mas segue suspenso das
ordens sacerdotais. Os paninhos sujos de sangue são roubados da matriz do Crato
e desaparecem por vários anos.
VIII
Proscrito pela Igreja, o padre Cícero gradualmente faz da política seu novo
sacerdócio. A beata cai no ostracismo. Não há notícia de que os milagres
continuem a ocorrer, mas as romarias a Juazeiro prosseguem, cada vez maiores.
Com as esmolas dos peregrinos, Cícero acumula vasto patrimônio. Torna-se
prefeito e vice-governador do Ceará.
IX
Em 1916, a Santa Sé declara que Cícero, aos 72 anos, por ainda alimentar o
"fanatismo", está excomungado. Mas ele jamais saberia disso. Temendo pela saúde
do velho padre, o bispo do Crato, Quintino Rodrigues, evita aplicar a excomunhão
e exige dele uma retratação pública. O Santo Ofício revê a pena, mas mantém
suspensas as ordens sacerdotais.
X
Em 1930, sob os protestos de Cícero, o corpo da beata é retirado da sepultura,
dentro da capela de Nossa Senhora do Socorro, em Juazeiro. A justificativa das
autoridades religiosas era que o templo seria reformado. Mas, após a exumação
(feita sem autorização legal), os restos de Maria de Araújo desaparecem. A
intenção real era eliminar um dos locais de romaria.
XI
Em 1934, morre Cícero Romão Batista. No testamento, ele deixa a maior parte dos
bens para a Igreja. Após o falecimento do padre, os paninhos manchados de sangue
reaparecem em poder de uma beata. Por ordens do novo bispo do Crato, de acordo
com o que determinara o Santo Ofício, eles são destruídos e queimados.
XII
Em 2001, o cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da
Fé, reabre o processo que culminou na suspensão de Cícero. Em 2005, Ratzinger é
eleito papa. No ano seguinte, recebe a documentação de uma comissão
interdisciplinar de estudos que sugere a anistia, post-mortem, do padre. O caso
segue em estudos no Vaticano.
Saiba mais:
LIVROS
Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no sertão, Lira Neto, Companhia das Letras,
2009
Biografia do polêmico sacerdote, ilustrada com muitas fotos de época e
fac-símiles de documentos raros e inéditos.
Milagre em Joaseiro, Ralph Della Cava, Paz e Terra, 1976
Um dos principais estudos acadêmicos sobre a figura de Cícero, escrita por um
brasilianista que teve acesso a vasta documentação original.
Post-Scriptum
Altares e oficinas: a influência de padre Cícero sobre as artes em Juazeiro
Grande parte da vitalidade cultural de Juazeiro do Norte se deve ao papel
catalisador desempenhado pelo padre Cícero Romão Batista, depois dos "fatos
extraordinários" de 1889, quando a hóstia teria se transformado em sangue
durante a comunhão da beata Maria de Araújo.
Certo é que o "milagre" repercutiu, se fixou no imaginário coletivo sertanejo e
a transmissão oral fez o acontecimento ganhar dimensão mítica. O relato chegou,
timidamente, ao cordel, talvez pela força repressora da Igreja Católica, que
tentou apagar o fato. As romarias se iniciaram como uma manifestação de gratidão
pelas graças alcançadas e pela expectativa de mudança de vida na Nova Jerusalém
das profecias sertanejas.
O padre Cícero estava lá para abençoar os que chegavam e para autorizar a
fixação dos adventícios no espaço da cidade que crescia depois da Semana Santa
de 1889. É curioso ler os relatos que falam que os romeiros tomavam a bênção ao
"Padim" e pediam para ficar na cidade. Alguns cobravam dele a definição de um
ofício. Em uma de suas prédicas, feitas sob medida para a compreensão dos
segmentos iletrados do sertão, padre Cícero teria dito que Juazeiro deveria ter,
em cada casa, uma oficina e um altar. Era a máxima beneditina do "trabalho e
oração" que ganhava uma enunciação mais fácil de ser assimilada e vivida pelos
que migravam em busca de vida nova.
As elites apostavam no esvaziamento das peregrinações após a morte de Cícero, em
1934, mas ainda hoje as levas de romeiros continuam a chegar a Juazeiro. Vem
gente de todos os estados do Nordeste. Isso faz com que a cidade se transforme
num ponto de encontro e de caldeamento (ou de hibridações ou sincretismos ou
bricolagens) de práticas culturais.
Toda essa rede de romeiros traz suas vivências e valores. O resultado não
poderia ser outro: Juazeiro do Norte explode de tantas cores, formas,
performances, narrativas e artefatos. Interessante retomar alguns testemunhos
que evidenciam a importância da aprovação do líder religioso para a permanência
dos romeiros. Mestre Noza (Inocêncio da Costa Nick), nascido em Taquaritinga do
Norte (PE), em 1897, foi para Juazeiro quando tinha 15 anos. Um dia, esculpiu um
padre Cícero em umburana e foi mostrar a ele: "Meu padrinho Cícero achou graça e
perguntou: ‘Eu sou assim?’. Daí eu fiquei fazendo" (O Reinado da Lua, de Sílvia
Coimbra, Flávia Martins e Maria Letícia Duarte).
O poeta paraibano João de Cristo Rei (João Quinto Sobrinho), nascido em 1900,
afirmou: "Entendi de fazer uns versinhos. Cheguei aqui, fui ler pro meu padrinho
Cícero, ele achou muito bonito e disse: ‘Você, de ora em diante, vai ser poeta’"
(Antologia da Literatura de Cordel, organizada pela Secretaria de Cultura do
Ceará).
Se essas autorizações se davam de fato ou se o pacto era uma aliança de força e
de bênção, pouca diferença faz para quem se interessa pela escultura de Noza ou
pelo cordel de Cristo Rei.
Mas a hipótese não se esgota nesses grandes nomes. O que se quer evidenciar é
que artistas anônimos trouxeram para a cidade um saber que se manifesta na arte
do couro, no trançado de palha, no entalhe da madeira, na modelagem do barro, na
fabulação do cordel, na xilogravura e nas tantas modalidades que dão forma ao
belo e ao útil. Juazeiro é ímpar e única. Ela nos surpreende pelo inusitado,
pela permanente invenção e pela dinâmica que impulsiona sua cultura. Importante
ressaltar que essas manifestações estão vivas, são negócios, meios de vida e
instalam um clima de animação cultural. A cidade pulsa movida por esse élan
criativo, de reaproveitar tudo e dar estatuto de arte ao que poderia estar no
lixo.
Assim, sobras de sandálias feitas de borracha se transformam em imagens do
"Padim" e latas de cerveja se tornam lamparinas. Nesse contexto de inevitável
globalização, a China nos manda imagens de padre Cícero de resina com chip que
toca um arrastado e incompreensível bendito.
Os altares continuam, mas as oficinas proliferam e dão o tom de uma cidade de
pequenos negócios e grandes ideias, abençoada pelo padre Cícero, do alto da
colina do Horto.
*Gilmar de Carvalho é jornalista e professor da Universidade Federal do Ceará"
(Aventuras na História, Ed. 76, novembro/2009, PÁGS. 29-35)