RISÃO SEM GRADE E RETORNO À SOCIEDADE
08/02/2010
"Prisão sem grades
Fechada apenas por uma cerca, Fazenda de Ressocialização de Presos Reviver fica
aos pés da Serra da Piedade, a 1.100 metros de altitude, em área de preservação
ambiental
Daniel Antunes
O trabalho é remunerado e o dinheiro dividido entre o preso e a família
É possível imaginar um centro de ressocialização de presos que cometeram crimes
que vão de homicídios a estupros, passando por assalto à mão armada, que não
seja cercado por muros, grades, seguranças, alarmes ou agentes fortemente
armados? Pois esse lugar que desafia a imaginação existe há pouco mais de um ano
na zona rural de Caeté, a 50 quilômetros de Belo Horizonte, na região
metropolitana. O projeto, inédito, é fruto de uma parceria entre a Vara de
Execução Penal do município e o governo do estado, que deu origem à Fazenda de
Ressocialização de Presos Reviver.
O centro funciona numa área de preservação ambiental, a 1.100 metros de
altitude, aos pés da Serra da Piedade, um lugar de beleza ímpar, e tem
capacidade para acolher 35 detentos que cumprem pena nos regimes semiaberto ou
aberto. A área de 40 alqueires é fechada apenas por uma cerca, que divide o
local de outras propriedades rurais. A segurança é feita por dois vigilantes,
que não usam qualquer tipo de arma.
A ideia do Projeto Curar, da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds),
surgiu em 2008, quando a cadeia de Caeté sofria com problemas de superlotação e
praticamente não havia um trabalho adequado de ressocialização de detentos em
regime semiaberto. Abandonada e servindo de esconderijo a animais e marginais, a
estrutura erguida há mais de 20 anos para abrigar uma escola agrícola, que nunca
chegou a funcionar, foi doada pela prefeitura para receber o projeto. Em quatro
meses de trabalho voluntário de membros do Conselho Comunitário de Caeté,
entidade ligada ao fórum da cidade, o local foi recuperado. Ganhou nova rede
elétrica, piso, portas e janelas e, no fim de 2008, começou a receber os
primeiros presos. "Começamos com a criação de uma horta, onde os detentos
plantam de tudo, desde feijão até pimenta e cana geneticamente modificada”, diz
o aposentado Francisco Mallio Brandão, de 71 anos, que foi contratado para
administrar o espaço, onde passa o dia sem portar nenhum tipo de arma. "Nunca
tive medo de andar aqui. Eles (os detentos) estão aprendendo a cada dia sobre
respeito e disciplina", comenta.
A dedicação ao projeto é tanta que assim que a fazenda começou a funcionar
Francisco se mudou, do Centro de Caeté, com a mulher e um filho, para uma casa
no distrito da Penha, ao lado da antiga escola agrícola. "Isso aqui agora é a
minha vida. Sei que estou ajudando a recuperar pessoas para a sociedade", diz.
Aproveitando a estrutura da escola, foram montados dormitórios, lavanderia,
salas para palestras e cozinha. Além da horta, os presos passam o dia
trabalhando num galpão construído dentro da unidade pela empresa Pentec,
siderúrgica que fornece material para o setor de mineração. O trabalho, que
consiste no acabamento de peças produzidas pela indústria, é remunerado (dois
terços do salário mínimo) e o dinheiro é dividido entre o detento e a família.
"Com esse dinheiro, muitos estão reformando suas casas, comprando
eletrodomésticos e dando um conforto melhor para os filhos”, conta a juíza da
Vara de Execução Penal de Caeté, Cláudia Regina Macegosso.
Em pouco mais de um ano de funcionamento, a magistrada considera os resultados
animadores. Presos que conseguiram a liberdade já estão integrados à sociedade.
Alguns, inclusive, empregados em grandes empresas da região. "São ideias simples
que vão dando resultado. Apostamos numa dinâmica em que o preso se sente mais
valorizado pela família e pelo trabalho que exerce dentro do projeto”,
acrescenta a juíza.
Se durante a semana o dia é dedicado ao trabalho, o domingo é reservado à
família, que tem autorização para entrar na fazenda. "Fora isso, cada um tem
direito a sete saídas durante sete dias do ano para ir em casa”, comenta Cláudia
Regina. Até o fim do primeiro semestre, o objetivo é investir em atividades como
avicultura, com criatório de frangos de corte; piscicultura, com o uso de um
represa criada para esse fim; e plantio de café. O projeto mantém parcerias com
a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas (Emater), o Instituto
Estadual de Florestas (IEF) e a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semad),
que doaram serviços de máquina para a preparação de solo, sementes, adubo, além
de orientações sobre como preservar o meio ambiente.
Modelo para a liberdade
Nas penitenciárias convencionais, o estado gasta por mês R$ 1,7 mil por detento,
enquanto no Projeto Curar são investidos R$ 400, e os índices de reincidência no
crime são baixíssimos
Após dois meses, Geraldo Martins teve permissão para rever mulher e os filhos em
casa
"Papai, vou sentir saudade". Depois de um longo silêncio e com os olhos em
lágrimas, Geraldo Martins dos Santos, de 53 anos, que cumpre pena por homicídio,
respondeu à filha Jéssica Yasmim, de apenas 4 anos. "Daqui a pouco estou de
volta". Fazia dois meses que ele não visitava a família, que vive num barracão
de seis cômodos, construído graças ao dinheiro que recebe trabalhando no centro
de ressocialização de presos de Caeté. Geraldo conseguiu autorização para ir em
casa e se encontrou com a esposa e as seis filhas, a mais nova delas de apenas
cinco meses. Ele foi levar uma caixa com couve, milho, inhame e cebola colhidos
na horta que também ajuda a cuidar. Antes de ser incluído no projeto, Geraldo
cumpria pena na penitenciária de Caeté, onde chegou a dividir a cela com outros
nove presos. "Não tinha espaço nem privacidade. Passei quase três anos naquele
lugar e não desejo isso para ninguém", relembra.
Em dezembro de 2008, foi incluído na inédita lista dos presos que seriam
enviados do presídio de Caeté para a fazenda de ressocialização. Os
conhecimentos que tinha em plantações de hortaliças ajudaram a ganhar o respeito
do administrador Francisco Mallio. "Ele é uma das pessoas que mais tem nos
ajudado desde o início. Com certeza vamos sentir falta dele quando ganhar a
liberdade", afirma Francisco.
Geraldo cumpre pena de 24 anos por um homicídio ocorrido na década de 1980,
crime do qual não gosta de falar. Há um ano, adotou a Bíblia como amiga fiel.
"Aprendi nas aulas de evangelização aqui na fazenda a importância da religião na
vida das pessoas. Hoje quero provar para todos que sou uma pessoa melhor. A
gente quer mostrar para a sociedade que não somos as pessoas más que pensam."
Empolgado com o novo estilo de vida, ele acredita que deve conseguir a liberdade
em agosto. A pena, inicialmente estabelecida em 24 anos, foi reduzida pelo bom
comportamento. Além disso, a cada três dias de trabalho na cadeia é descontado
um na pena. Ao deixar o centro de ressocialização, pensa em trabalhar em alguma
fazenda da região. "É o que sei fazer. Além do mais, estou velho para as
empresas", diz.
Estado de Minas, 08/02/2009
Ver mais DIREITO