SOBRE REFORMAS E MENTIRAS
(Magno Antonio Correia de Mello)
08/08/2003 -
02:36
Não há caminho mais tortuoso e sofrido do que o trilhado pela ignorância e pelo
desconhecimento. A consciência humana, não resta nenhuma dúvida, foi a tábua que
resgatou nossa frágil espécie do limbo. Éramos apenas macacos assustados, sem
força suficiente para reagir aos grandes predadores, quando os caprichos da
evolução nos atribuíram a capacidade de pensar, reconhecer o mundo, identificar
os agressores, construir mecanismos de defesa contra eles, descer das árvores,
imperar sobre os animais que antes nos oprimiam.
Parece despropositado abordar o assunto em um texto cujo tema se restringe à
reforma previdenciária, mas é que o problema essencial da alteração
constitucional em andamento não se situa exatamente nas perversidades embutidas
em seu texto. Mais do que elas e mesmo como forma de alcançar os objetivos
repugnantes da mudança, o que realmente incomoda na tramitação da PEC 40/2003
reside no fato de que tudo está sendo executado de modo a impedir que a
população conheça os riscos e os deslizes envolvidos na iniciativa do governo
petista.
Assim, vê-se que, ao contrário do que parecia, a comparação feita de início vem
bem a calhar, porque não são muitos melhores do que nossos ancestrais das
cavernas os que sabem da reforma previdenciária apenas o que se afirma nas
informações normalmente divulgadas. Os que defendem a reforma costumam assegurar
que se pretende obter o equilíbrio nas contas previdenciárias ou – pior ainda –
que o objetivo é a equiparação de direitos. Os supostos adversários da proposta
satisfazem-se em alegar que o presidente a enviou para atender exigências de
organismos internacionais.
As duas versões possuem diversos defeitos. O mais grave, porém, é que se baseiam
essencialmente em distintas formas de mentira. Quanto aos argumentos dos que se
alinham com os reformistas, é preciso ser claro: ao invés de resultar em
economia fiscal, a reforma levará à ruína as contas públicas, e não tornará
iguais juízes e cortadores de cana, até porque mudanças constitucionais não
constituem um jeito muito inteligente de entregar facões a magistrados e vestir
togas nos homens do campo.
A ótica dos que em tese resistem ao novo texto constitucional torna-se estéril
por outros motivos. A crença de que o FMI é o responsável por tudo traz
conseqüências desagradáveis para os que pretendem conduzir os acontecimentos a
outros rumos. Privatização, neoliberalismo, globalização, consenso de Washington
e chavões de semelhante calibre parecem substantivos pesados, mas resultam na
construção de inimigos invisíveis. Enquanto as bandeiras de movimentos grevistas
são erguidas contra abstrações desse nível, pessoas de carne e osso agem
impunemente e às escondidas.
É preciso, portanto, que todos deixem de se comportar como avestruzes e encarem
de frente a dura realidade que até agora a unanimidade burra vem insistindo em
relegar a segundo plano. A PEC 40/2003 não chegou ao Congresso Nacional trazida
por agentes encapuzados da banca internacional e também não se destina a
corrigir o desequilíbrio social ou dar um jeito nas contas públicas. Do mesmo
modo, os que na terça-feira votaram a favor de sua aprovação foram eleitos pela
vontade popular e não consta que seus nomes tenham sido sufragados na última
reunião de Davos.
Partindo dessa premissa, somos obrigados a identificar em Luiz Inácio Lula da
Silva e não em um diretor do FMI o responsável pela apresentação de um texto
que, se promulgado da forma como hoje se encontra, devolverá o serviço público
brasileiro a uma realidade que parecia superada desde o início do século vinte.
Luiz Gushiken, Ricardo Berzoini, Antonio Palocci, José Dirceu, José Genoíno,
Sérgio Rosa e alguns outros indivíduos que convivem em nosso meio, ao invés de
representantes do sistema financeiro internacional, são desses aí que precisamos
cobrar as intenções da reforma e questionar-lhes o comportamento. Os gestores do
FMI não dispõem de muito espaço na agenda para receber a população brasileira,
nem consta que estarão em campanha pedindo votos no próximo pleito.
Essa mudança de enfoque talvez seja o caminho mais curto para que o povo perceba
o tamanho do equívoco que está apoiando. Realizando esse verdadeiro “cavalo de
pau” em termos de compreensão do mundo, a população poderá recuperar a biografia
dos reformistas. Descobrirá que os nomes antes elencados não começaram em 1º de
janeiro de 2003, data de posse do atual presidente, a cogitar as idéias que hoje
defendem. Desde muito antes se apossaram de um fundo de pensão bastante
conhecido – a PREVI do Banco do Brasil – e se puseram a maquinar tudo que hoje
está ocorrendo.
A afirmação pode causar estranheza, mas só porque muitos ignoram uma
particularidade da entidade antes referida: até meados do ano passado, quando
uma intervenção mudou seu estatuto, a PREVI era administrada em igualdade de
condições por diretores eleitos e por outros indicados pelo patrocinador do
fundo. Utilizando a prerrogativa e se valendo do trânsito de que dispunham no
movimento sindical dos bancários, o grupo paulista do PT, mais conhecido pelo
apelido “articulação”, conseguiu assumir cadeiras estratégicas na gestão da
entidade, ocupadas por pessoas de sua estrita confiança, que se aproveitaram da
oportunidade para cometer inúmeros e imperdoáveis deslizes.
A participação da PREVI na privatização, a escolha de uma série de investimentos
questionáveis ao longo do tempo para aplicar o dinheiro do fundo, a adoção de
medidas contábeis fraudulentas, como a descoberta de que um ativo estaria
registrado no patrimônio por cinco bilhões de reais a menos, ocorrida em 2002,
esses e outros absurdos não foram cometidos contra a vontade dos dirigentes
petistas. Contaram não apenas com a conivência, como também com a participação
efetiva dos membros do grupo.
É bastante provável que os novos fundos de pensão, a serem disseminados no
âmbito da administração pública depois da aprovação da PEC, venham a reproduzir
as imoralidades e abusos que vêm caracterizando o comportamento dos
idealizadores da reforma em curso. Se essa expectativa se confirmar, em pouco
estaremos tendo inveja do nível de desgraça que hoje assola uruguaios e
chilenos. E haveremos de visitar Buenos Aires, não para dançar um tango
argentino, mas para aprender de que modo, e com que custos, pode-se reconstruir
um país transformado em cinzas.
(Magno
Antonio Correia de Mello)
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