SEXUALIDADE CRIMINALIZADA
29/10/2009
"Sexualidade Criminalizada: Prostituição, Lenocínio e Outros Delitos - São Paulo
1870/1920
João Batista Mazzieiro
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RESUMO
Este artigo acompanha debates de criminólogos, juristas, médicos e outros
profissionais sobre a sexualidade julgada criminalizável e doentia, por eles
associada à pobreza, em São Paulo. O texto realça práticas de esquadrinhamento
da cidade e da plebe não-proletarizada por aqueles agentes e suas instituições
como estratégias de disciplina e dominação em nome de normas burguesas.
Palavras-chave: criminalidade, prostituição, homossexualismo, São Paulo.
ABSTRACT
This article pays attention to the debate of criminologists, judges,
professionals of medicine and others about relations between sexuality, crime
and sickness, and its connection with poverty in the city of São Paulo. The text
discuss some of the institucional projects and practices develop by them aiming
to discipline the city and the poor population.
Keywords: criminality, prostitution, homosexuality, São Paulo.
Segundo Evaristo de Moraes, um dos maiores criminólogos brasileiros da virada do
século XIX para o XX, a prostituição era um "mal necessário" para a preservação
da moral no lar, não podendo ser considerada crime. Entretanto, ela foi
criminalizada como "ato imoral" que ameaçava a vida social. Paralelamente a
isso, existiu uma repressão médica, que perpassava a profilaxia da sífilis, e
uma repressão moral contra os "escândalos" promovidos pelas meretrizes.
Implantou-se, portanto, uma penalização quanto à "conduta anti-social
(anti-higiênica ou desmoralizante)" das meretrizes que ofendessem a sociedade e
o Estado. A Medicina foi uma forma de penalizá-la, pois a polícia devia capturar
as prostitutas para exames médicos. Tratava-se, então, de um controle da
sexualidade vista como criminosa pelo discurso da Criminologia: declarava-se ser
necessário uma Polícia Sanitária para criminalizar a prostituição1.
A criminalização de prostitutas também se dava através do que se julgava
atentado ao pudor: se alguma mulher "comete um ato que escandalize o público,
deve ser presa". Alegando que nas ruas onde se explorava o meretrício as
decaídas exibiam-se escandalosamente, ofendendo o pudor público, falando
palavras obscenas ou provocando transeuntes ao deboche, as autoridades policiais
procuravam enquadrar estes atos como crimes. Buscavam justificativas no artigo
282 do Código Penal, que punia todo aquele que "ofender os bons costumes com
exibições impudicas, atos ou gestos obscenos, atentatórios ao pudor, praticados
em lugar público"2. Outra forma de criminalizar a prostituição foi a sua
equiparação à vagabundagem, podendo a meretriz ser enquadrada no Código Penal e
presa.
O decreto 1.034A, de 01/09/1892, atribuiu ao Chefe de Polícia "ter sob sua
vigilância as mulheres de má vida". Em 05/02/1902, o decreto 4.763 dispôs que
cabia aos delegados urbanos e suburbanos essa vigilância, "da forma que julgar
mais conveniente ao bem-estar da população e à moral pública". Em 1907, os
decretos legislativos 1.631 e 6.440 destinaram essa função aos Delegados de
Polícia. Uma vez que a prostituição não era matéria do Código Penal, a atuação
do poder do Estado sobre ela estava a cargo da própria polícia que a
criminalizava por sua prática cotidiana.
Fosse a prostituição, no discurso da Criminologia, um fenômeno fisiológico,
orgânico ou patológico - quer dizer, doentio - ela era vista por moralistas,
sociólogos e criminólogos como resultado do meio social, tendo como principal
causa a miséria. O meretrício seria inevitável pois uma parte significativa de
mulheres somente obteriam a sua sobrevivência pela prostituição. Com relação aos
homens, o meretrício seria a única forma de obter satisfação sexual. Segundo
diversos autores, a prostituição era uma necessidade social como "a ante-mural
do lar doméstico.(...) "Não se conhece meio algum eficaz de impedir,
coercitivamente, a existência dessa instituição".
Candido Motta, que, além de ter sido um dos principais criminólogos da época,
seguiu carreira nos cargos públicos, desde Chefe de Polícia até Secretário da
Justiça e Segurança Pública do Estado de São Paulo, escrevendo em 1897, afirmava
que a prostituição era considerada um "fenômeno social fatal e necessário", como
o crime, uma resultante de fatores antropológicos, físicos e sociais. "A sua
necessidade explica-se pelo derivativo que oferece às excitações genéricas muito
intensas, que sem ela não respeitariam, talvez, nem a infância, nem o lar
doméstico". Daí, a necessidade de opor barreiras ao vício que, sem elas, se
alastraria num crescendo3.
A sexualidade no lar tinha seus limites, devendo ser respeitada a "natureza" e
contidos os excessos. A relação sexual ali era mantida dentro dos padrões
tradicionais, extirpando-se desvios, mantendo-se a reprodução e a sexualidade
sadia. O submundo da sexualidade devia ser exercido fora do lar, com o sadio e o
desvio podendo existir mas de formas separadas: eles não caberiam no mesmo teto,
nem na mesma rua. A perversão só era possível, portanto, no mundo da
prostituição, cabendo dentro do lar o respeito.
Para alguns criminólogos, apesar da preponderância das causas sociais na
explicação do meretrício, existiam casos patológicos, mulheres que se entregavam
"à prostituição pelas exigências mórbidas do seu organismo"4. Lombroso afirmou a
existência da prostituição (feminina) nata, do mesmo jeito que existia a
criminalidade (masculina) nata, ambas marcadas pela hereditariedade5.
De acordo com esses mesmos profissionais, "a prostituição com os característicos
da que hoje conhecemos resultou do desenvolvimento urbano"6. O período de 1870 a
1920 foi exatamente aquele em que tanto a cidade de São Paulo, como outros
núcleos do mesmo estado (principalmente Campinas e Santos) estavam se formando.
São Paulo se transformava num centro industrial e de serviços, Campinas era o
principal centro cafeeiro e Santos o grande porto do estado, por onde passava
toda a exportação e importação de mercadorias e, principalmente, imigrantes7.
Segundo Moraes, a grande indústria "tende a destruir os elos e freios
familiares". Os baixos salários femininos faziam com que a prostituição fosse"
um fenômeno econômico, como sendo o complemento do salário insuficiente, ou a
falta absoluta de salário". 95% das prostitutas, nessa perspectiva, vinham das
classes pobres, como forma de sobrevivência8.
Nessa argumentação, as prostitutas faziam parte da classe trabalhadora, sendo de
uma parcela dos despossuídos que, através da venda do corpo enquanto objeto
sexual, originava-se a prostituição.
A imensa maioria das meretrizes provém das camadas mais pobres quer do campo,
quer dos centros urbanos e das profissões mais modestas9.
Encarava-se a prostituição como um trabalho: por um lado, uma oferta do corpo,
de outro, uma procura de satisfação sexual. Existiria, pois, "a troca de uma
prestação de prazer por uma prestação de dinheiro". Segundo Moraes, a
prostituição não podia ser comparada com a vagabundagem, ação unilateral, pois o
meretrício era bilateral: "sem a intervenção de duas pessoas, das quais uma se
prostitue à outra, é incompreensível a triste indústria do prazer"10.
Ao se encarar a prostituição como um trabalho, descriminalizava-se esse tipo de
vida. Moraes chamava mesmo a prostituição de indústria do prazer: a prostituta
vendia seu corpo, tratava-se de uma mercadoria.
Esse mesmo autor afirmou a existência de um direto relacionamento entre o
desenvolvimento industrial e a prostituição precoce: o ambiente da fábrica
aproximava os sexos, afastava a vigilância familiar, criava o trabalho noturno,
propiciava a autoridade do contramestre e do patrão, que podiam abusar
imoralmente da situação. Além disso, os baixos salários pagos às menores por
longas jornadas de trabalho contrapunham-se a um meio corruptor e cheio de
seduções: (...) com a expansão da nossa atividade industrial, e concorrendo a
crise econômica, sofremos aqui, no Brasil dos mesmos males: a prostituição
precoce, também deriva, entre nós, em parte considerável, das condições sob as
quais meninas e moças trabalham nas fábricas e nas oficinas11.
Moraes também considerava que a falta de instrução profissional era causa da
vagabundagem e criminalidade dos menores masculinos e da prostituição feminina
precoce. Essa instrução seria a forma de "incutir o amor ao trabalho,
ensinando-lhes uma arte ou um ofício". Entretanto, a prostituição, deslumbrante
pelo luxo das sedas e jóias, seduzia as menores que nela viam uma forma de obter
prazeres e alegrias inacessíveis para assalariadas12.
De acordo com Moraes, da mesma forma que a criminalidade era cada vez mais
precoce, também as prostitutas eram cada vez mais jovens: sendo a prostituição
feminina o equivalente ao crime para os homens, os dois ramos procuravam o seu
principal exército nas camadas de mais tenra idade.
Mormente no Rio de Janeiro e em São Paulo, constitue a prostituição da infância
e da adolescência fenômeno alarmante, patenteado todos os dias aos olhos da
Polícia e da Justiça13.
As habitações coletivas estariam na gênese da prostituição precoce: "A
sobre-população das `cidades tentaculares' concorrendo com a falta de meios que
aflige as classes proletárias, tem necessariamente, de criar, para estas, a
crise da habitação". Essas habitações trariam aglomeração de muitas pessoas em
espaços reduzidos; mistura de adultos com crianças num só compartimento;
reunião, em uma só casa de gente honesta e desonesta, em inevitável
promiscuidade. São, portanto, as habitações a que estamos aludindo, não somente
nocivas à saúde dos seus ocupantes, como à sua moralidade14.
Nessas moradias promíscuas, as crianças das classes proletárias perdiam a moral,
pois muitas delas dormiam no mesmo quarto ou na cama de pessoas adultas. Prédios
que antes tinham sido moradias de famílias ricas transformavam-se em casas de
cômodos, onde morava gente de toda a espécie. Nelas, nas salas da frente
exerciam abertamente a prostituição das respectivas locatárias, e, no corredor
comum, moças operárias e crianças dos dois sexos se acotelavam com os fregueses
das meretrizes15.
Apesar da prostituição ser uma instituição anterior ao capitalismo, ela assumiu
características próprias nesse contexto social, tomando proporções diferentes,
principalmente se for levada em conta a vida na cidade.
As prostitutas tinham condições de vida e de trabalho diferenciadas: as"
independentes" ou "isoladas", que moravam nas suas próprias casas, podiam
escolher com quem ter relações sexuais e, "como tudo que ganham lhes pertence,
recebem menor número de homens"; as prostibuladas eram obrigadas a receber
aqueles que freqüentavam o bordel e "as donas de casa não lhes concedem
repouso", existindo um excesso de trabalho - "as reclusas ficam à disposição das
patroas, para todos os serviços, desde uma ou duas horas da tarde, até três ou
quatro da madrugada, hora em que findo o expediente, vão dormir"16.
Até o último quartel do século XIX, a medida oficial de expulsar das cidades as
mulheres que perturbassem a tranqüilidade pública era considerada eficaz. Com a
corrente imigratória, os relatórios policiais afirmavam que "elas não mais
correspondiam às exigências da nova realidade social". No relatório de 1879,
Fleury reclamou da ineficácia das leis para controlar a "avalanche de
prostitutas que invadiam a Paulicéia trazendo consigo seus cáftens"17. O Estado
procurava controlar a entrada de prostitutas e cáftens: em 1912, a polícia de
São Paulo estava preocupada com o porto de Santos, que devia ser cuidadosamente
guardado para evitar a entrada de" cáftens, anarquistas, ciganos"18.
A prostituição criou um mercado especial, o tráfico de mulheres, que no final do
XIX e no início do século XX, foi reprimido de forma constante pelo aparelho de
Estado, alegando-se um volume muito grande de estrangeiras entre as meretrizes
19.
Além da habitação da plebe, o alcoolismo também foi visto pela Criminologia como
causa da desmoralização dos filhos: "desaparece, por completo, a disciplina
familiar", o pai alcoólatra perdia a força moral, tornava-se apático ou
violento, deixando de ser "o defensor calmo e sizudo da honra da família".
Surgia daí o adultério da mulher e a perda das filhas20. A disciplina no lar, na
visão exposta, continha a sexualidade no seu devido lugar, ou seja dentro "da
família". O álcool aparecia como propiciador do desregramento moral e da perda
do poder patriarcal sobre o sexo de dependentes.
Em 1916, foram enviadas ao Asilo Bom Pastor quatro meninas prostitutas. Em 1920,
o asilo estava lotado, tornando difícil reprimir a prostituição infantil. No
relatório geral do Delegado Geral de 1920, São Paulo foi equiparada ao Rio
quanto àquela questão e não se via solução para o problema. Sendo o asilo a
única casa para recolher as menores prostituídas, perguntava-se: "como reprimir
crimes dessa natureza sem o recurso de internatos apropriados para as
vítimas"?21
A inexistência de leis penais ou mesmo de regulamentação da prostituição não
impedia que as autoridades policiais de São Paulo no final do século XIX
determinassem, na capital e em outras cidades populosas, "os pontos permitidos
aos prostíbulos e casa de tolerância". Alegava-se restabelecer a moral nessas
praças e ruas, fazendo com que fossem, "reabilitadas com a ausência de
prostíbulos escandalosos". Entretanto, a proximidade entre esses hotéis, clubes
e "maisons meublées" e as regiões centrais das cidades era responsabilizada por
levar a "grave prejuízo da ordem e do decoro público". A polícia colocou nas
portas dos prostíbulos praças que regulavam a entrada e saída de pessoas22.
Segundo Motta, em 1897, a campanha contra a prostituição desenvolvida pelo Chefe
de Polícia anterior a ele visou a "combater e reprimir os desmandos das mulheres
da vida airada, que nas ruas centrais, nos teatros, nas festas e nos
divertimentos públicos, incomodavam e até impediam as famílias de comparecer aos
pontos de reunião mais visitados, ou às diversões de maior concorrência"23.
Alegava-se ainda que, nas ruas onde existia o meretrício, passavam bondes cheios
de famílias, menores para as escolas, moças para o atelier ou para a aula sendo
ofendidas no seu pudor pelo espetáculo deprimente, que podia "servir de sugestão
deletéria a espíritos menos fortes". Argumentava-se que a ação da polícia,
"intimando essa gente a mudar-se, é toda preventiva, visa evitar crimes". A
vigilância ao local de prostituição não eliminava o atentado ao pudor, sendo
necessário um policial em cada porta para evitar os "atos obscenos" ou
"exibições impudicas". A forma da polícia agir devia ser, então, a que levasse à
localização da prostituição em certas ruas onde não fosse necessário à gente
honesta passar, evitando que ficasse exposta ao ultraje.24
Procurava-se a justificativa legal para a proibição de prostitutas em
determinadas ruas no artigo 41, nº XVII, do decreto nº 6.440, de 30/03/1907, que
permitia à autoridade policial agir "da forma que julgar mais conveniente ao bem
estar da população e à moralidade pública"25.
Nessa perspectiva, as ruas depravadas eram as que tinham como hóspedes as
prostitutas. Em 1870, a Rua 7 de abril abrigava as "horizontais". Por volta de
1855, existiam várias ruas habitadas pelas mundanas, todas elas no que hoje é a
Praça da Sé. Na rua Esperança e no "Beco dos Mosquitos", ficava a ralé do
meretrício. Ali, ocorriam pancadarias entre soldados do Exército e da Polícia e
desordeiros. As principais medidas do regulamento de 1896 se destinavam às
prostitutas residentes nessas ruas. O meretrício mais elegante ficava na Avenida
São João e no Largo do Paissandú. A mais conhecida de todas as ruas destinadas à
atividade era a Líbero Badaró26.
Segundo Guido Fonseca, Delegado de Polícia em São Paulo na década de 80 do
século XX e autor de um livro que abrange diversas das questões aqui
trabalhadas, "o desenvolvimento urbano foi, paulatinamente, expulsando as
decaídas das partes mais centrais da cidade". Em 1911, com o alargamento da
Praça da Sé, acabavam várias ruas e becos do meretrício e as prostitutas foram
deslocadas pela polícia. O alargamento da Líbero Badaro também expulsou as
"mariposas", elas se deslocaram para o Vale do Anhangabaú, os Largos dos Piques
e São Francisco, a Av. Ipiranga e as Ruas Amador Bueno, Benjamim Constant,
Timbiras e Senador Feijó. No final do século XIX, a Rua Cruz Branca, no Brás, já
era de meretrício, sendo que ali a Polícia sempre prendia ladrões e jogadores.
As prostitutas presas recebiam uma ducha de água fria ou uma surra e tinham a
cabeça raspada27.
As autoridades policiais procuravam confinar as prostitutas no gueto para evitar
seu livre trânsito. O gueto, entretanto, não se restringia à região e à rua, ele
se expressava também no confinamento da prostituta na casa. A casa de tolerância
devidamente licenciada, portanto, foi a base da polícia de costumes, ficando
mais fácil a fiscalização28.
Ainda de acordo com Fonseca, no início do século, vários eram os bares
freqüentados por prostitutas e seus fregueses. Na "Confeitaria Castelões", na
Praça Antonio Prado, encontravam-se os ricaços, os boêmios e, depois das 17
horas, as" marafonas". Na avenida São João, encravavam-se os cafés-concertos com
as" horizontais". O bar do Municipal transformava-se em "feira de amores caros".
As "pensões alegres" foram as principais responsáveis pelo desenvolvimento do
meretrício em São Paulo no final do século XIX e início do século XX. "Nelas
reuniam-se os mais abastados (...) que em companhia das mulheres realizavam
ceiatas". Segundo estimativas da Câmara Municipal, em 1917, elas eram em número
de 50 a 60. No início deste século, na Avenida São João até à altura da Avenida
Duque de Caxias, funcionavam 16 dessas "pensões"29.
Fonseca afirmou que não só de amor viviam as "pensões alegres". Os crimes contra
o patrimônio e, nos primeiros anos deste século, o tráfico de entorpecentes
passaram a ter destaques nas estatísticas. Esse tráfico atingiu seu auge na
década de 20, mas já se consumia antes o éter, a cocaína, a morfina, o ópio e a
maconha. Em 1918, o Delegado de Polícia concluíu que os "vícios elegantes (...)
em todas as suas degradantes modalidades vai se alastrando perigosamente,
contaminando a flor da mocidade". Além das mundanas, os garçons e os porteiros
das "pensões" serviam de intermediários no tráfico. Nos bares, confeitarias e
restaurantes, ao som do" jazz band", os jovens consumiam o absinto. A maconha
era vendida em cigarros nas tabacarias e bares, sendo comercializada livremente
no início do século XX como medicamento. Na praça Antônio Prado e na Travessa do
Comércio, era adquirida a cocaína. Numa luxuosa "garçonniere" da Avenida
Paulista, funcionava uma casa de fumadores de ópio30.
Outra forma de controle e repressão à prostituição se deu através da
regulamentação policial-sanitária do meretrício. Apesar de ser difícil avaliar a
efetivadade concreta de políticas sanitárias, o debate e a tentativa de
implantação das mesmas apareceram em diversos momentos do período estudado.
O sistema de regulamentação policial tinha a nítida função de controlar a moral
e a higiene. De um lado, tanto a moral quanto a saúde burguesa deviam ser
preservadas, de outro, colocava-se a necessidade de defender a moral pública dos
"escândalos e exibições" promovidos pela prostituição. Com relação à questão da
saúde, a burguesia deve ser protegida da propagação de doenças venéreas. Para
isto devia-se criar mecanismos através dos quais as prostitutas fossem forçadas
a visitar obrigatoriamente hospitais. Considerava-se necessário desenvolver a
"profilaxia da sífilis", julgada "moléstia social"31.
Travou-se um debate entre os regulamentaristas e seus adversários e o que
realmente venceu foi a intervenção da polícia na prostituição.
Segundo Marilena Chauí, foi a partir do século passado que o sexo como tema
deixou de ser privilégio dos teólogos, confessores, moralistas, juristas e
artistas e passou" a ser tratado como problema clínico e de saúde. Ou seja,
passou a ser estudado e investigado num contexto médico-científico preocupado em
classificar todos os casos de patologia física e psíquica, em estudar as doenças
venéreas, os desvios e as anomalias, tanto com finalidade higiênica ou
profilática quanto com a finalidade de normalização de condutas tidas como
desviantes ou anormais"32.
Em São Paulo, a primeira notícia de regulamentação apareceu em 1879. O Chefe de
Polícia disse ser necessário por um paradeiro na exploração dos cáftens, que
expunham as mulheres nas ruas, propondo elaborar um regulamento
sanitário-policial para as prostitutas, mesmo correndo o risco de com isto "dar
ao vício o caráter de instituição". O empenho da autoridade policial foi
apresentado como visando a" impedir a especulação torpe dos traficantes da honra
e da miséria de quem a perdeu", além das "afrontas ao decoro público por cenas
de escândalos, perigosos exemplos que insultam a virtude e arrastam os espíritos
fracos". Como conseqüência, as meretrizes eram obrigadas a assinar "termo de bem
viver"33.
Em 1897, o Chefe de Polícia de São Paulo, Cândido Motta, disse que "o espetáculo
que as mulheres públicas davam nesta capital, escandalizando a nossa sociedade,
enchendo de pasmo os nossos hóspedes, depondo contra os nossos costumes,
envergonhando-nos aos olhos do estrangeiro, reclama uma pronta intervenção da
polícia. Qual, porém o caminho a seguir, de modo a garantir a eficácia dessa
intervenção34?"
No mesmo ano, foram dadas as seguintes intruções aos guardas e às mulheres: a)
Estavam proibidos os hotéis ou conventilhos, podiam as mulheres morar em casa
particular, nunca em número superior a três, procurando evitar dessa forma o
caftismo; b) As janelas das casas deviam estar com cortinas duplas e persianas,
impedindo assim que o que ocorresse nos seus quartos fosse visto de fora; c) Não
podiam chamar, provocar nem conversar com os transeuntes; d) De noite, as
persianas dos quartos deviam ficar fechadas e elas não podiam ficar na porta da
casa; e) Deviam se vestir de forma decente e cobrindo todo o corpo,
principalmente o busto; f) Deviam guardar todo o recato nos teatros e
divertimentos públicos, não podendo conversar com homens nesses lugares.
"Julgamos necessário reduzir a escrito e publicar essas instruções sob o título
de Regulamento Provisório da Polícia de Costumes", sendo entregues cópias às
mulheres35.
Receberam o regulamento 220 mulheres públicas. Foi criado um livro para registro
de nome, idade e nacionalidade de cada uma. Com isto, segundo Motta, não quis a
polícia de São Paulo regulamentar a prostituição mas sim evitar ataques à moral
e aos bons costumes, procurando "garantir a paz das famílias, o decôro público,
a moralidade das ruas"36.
A base do sistema regulamentário era a inscrição policial da prostituta,
permitindo a identidade pessoal e os exames médicos. Essa inscrição, entretanto,
trazia alguns problemas. A regulamentação levaria à proibição do exercício da
profissão por aquelas mulheres que não se inscrevessem, ou seja, as insubmissas,
ou as obrigaria ao registro. O que na verdade ocorreu foi que a regulamentação
selou a insubordinação. As prostitutas fugiam da inscrição e as inscritas
procuravam escapar das "visitas das autoridades e dos médicos-policiais,
transformando-se em rebeldes" - quanto maior a repressão policial, maior o
número das não-inscritas37.
Criou-se uma nova tentativa de disciplinar o meretrício paulistano em 1908. Em
1913, o assunto foi novamente lembrado com um projeto apresentado à Câmara de
São Paulo. Ele propunha: a) Proibição de localizar casas de prostituição nas
ruas movimentadas e perto de: quartéis, colégios, escolas, fábricas, templos,
teatros e outras casas de diversão; b) Elas precisariam ter permissão para
funcionarem; c) As casas não podiam distinguir-se por qualquer sinal; d)
Incluíram-se os hotéis e pensões que recebessem prostitutas; e) Ficavam
proibidos nessas casas jogos, bailes, reuniões e venda de bebidas e comestíveis;
f) Os responsáveis pelas casas deviam ser registrados; g) As prostitutas deviam
se submeter a um exame médico e receber uma cardeneta de saúde, além de se
sujeitar à inspeções médicas; h) As doentes deviam ser internadas em um hospital
até a cura; i) As menores de 18 anos deviam ser entregues ao juízes de órfãos;
j) Proibia-se a entrada de menores nas casas; k) As prostitutas não podiam
exibir-se nas portas e janelas38.
O projeto, entretanto, não foi aprovado.
Criou-se um discurso médico e uma prática policial para a regulamentação, tendo
como base a repressão ao lenocínio e ao atentado ao pudor. A regulamentação
aprofundava-se em detalhes.
A Academia Nacional de Medicina propôs em 1914 a regulamentação do meretrício
como forma de acautelar "os interesses de uma raça, tornando-a sadia e
vigorosa". Via-se pois a prostituição como uma doença social, que devia ser
tratada, com o saber médico controlando a sexualidade e esquadrinhando o corpo
humano quanto ao seu desejo sexual. A regulamentação, dentro dessa visão de
profilaxia, procurava preservar o" futuro" da raça ameaçada pelo desregramento.
Dessa forma, ela "não é uma medida imoral que afronte os brios sociais"39.
Dentro da moral burguesa, cabia a prostituição desde que controlada pela polícia
e pelos médicos.
Moraes concluiu que o sistema regulamentário policial, tanto do ponto de vista
jurídico como médico, era "definitivamente arbitrário, inútil, ineficaz e até
certo ponto, prejudicial à solução do temeroso problema da defesa coletiva
contra as conseqüência do meretrício", somente abrindo cargos a médicos e
permitindo arbitrariedades policiais. Os juristas e médicos contrários à
regulamentação alegavam que ela seria a forma de reconhecimento público da
prostituição. Dessa forma, a regulamentação significaria a "organização oficial
do deboche, na legalização da libidinagem". Além disto, alegava-se que "a
regulamentação sã atinge uma décima parte do meretrício, nos países em que é
severamente executada"40.
A medicina se transformava num poder de polícia usando o controle da saúde
pública como forma de controle da sexualidade em nome de preservar a saúde da
burguesia e manter a classe trabalhadora com um mínimo de saúde para a produção.
Além disto, julgava-se necessário criar o medo da sífilis, o "mal do século", e
de outras doenças venéreas como forma de controlar os "desregramentos sexuais".
A saúde pública, exemplificada no tratamento das doenças venéreas, era uma forma
de exercício do poder do Estado, justificando-se o controle sobre a saúde dos
trabalhadores para existirem "cidadãos inteligentes e laboriosos, prósperas
manufaturas, agricultura produtiva"41.
Segundo alguns criminólogos, o poder de sedução das prostitutas "aumenta no
período agudo da moléstia". Dessa forma, a "prevenção" da sífilis assumia uma
forma de controle da sexualidade, principalmente dos jovens, "quando o aguilhão
da puberdade começa a arranhar-lhes o peito". A sífilis, "destruindo as energias
de uma nacionalidade, quebrando a amizade entre os esposos, produz maiores
estragos que o alcoolismo, o jogo e outros tantos flagelos"42. Criando-se um
certo temor em relação à sífilis, mostrando os sofrimentos que ela trazia,"
consegue-se afastar das casas de prostituição muitos dos que nela iriam buscar,
em troca de alguns momentos de prazer, dores para muitos anos (...)
desfazendo-se, no espírito dos moços, os falsos conceitos das moléstias
vergonhosas"43.
O "instinto genérico" são podia fluir quando se tinha um corpo formado. Dentro
dessa visão, o uso precoce, a perversão, criava nevroses e doenças. Mesmo
despontada a virilidade, era preciso previnir-se contra os resultados da vida
desordenada, conter-se contra os vícios, devia-se pregar o "sexo limpo"44.
Já em 1888, o Ministro da Justiça pediu à Academia de Medicina alguma fórmula de
conter a prostituição (referindo-se à Capital Federal), que, além de ofender a
moral das famílias, vinha "arruinando a saúde pública". Proclamada a República,
a repartição de polícia "adotaria medidas repressoras da prostituição e
decorrente profilaxia pública da sífilis e das molestias venéreas."45 O controle
da sífilis era uma forma de controlar a população. A Academia propôs uma"
regulamentação humanitária", de forma a salvar a raça dos males dessa doença
através do controle sobre a liberdade das "michelas" (prostitutas), acusadas de
contaminarem os rapazes e levarem ao lar a discórdia.
Em janeiro de 1890, em sessão extraordinária da Academia Nacional de Medicina, o
Dr. Silva Araujo fez um histórico da regulamentação sanitária da prostituição
que se buscava implantar no Brasil desde o Império, chegando às principais
conclusões: a) Chamou a atenção do governo para o desenvolvimento da "provocação
pública à imoralidade, por parte das meretrizes e dos cáftens e caftinas, na
Capital Federal", pedindo repressão; b) A disseminação da sífilis e de doenças
venéreas exigia," para salvaguarda da saúde pública", que as meretrizes fossem
inscritas e se submetessem a exames médicos e internações; c) Aquelas que não
quisessem inscrever-se, podiam apelar ao poder judiciário; d) Era necessário uma
"profilaxia da sífilis e regulamentação sanitária da prostituição"46.
A Academia fez as seguintes propostas: a) "regulamentação das amas de leite
(...) contra a infecção venérea e sifilítica"; b) "obrigatoriedade do exame de
dermatosifiliografia, nas faculdades médicas da República"; c) "execução dos
regulamentos do Exército e da Armada relativamente à profilaxia e ao tratamento
das moléstias venéreas e sifilíticas"; d) "criação de ambulatórios e hospitais
para tratamento das referidas moléstias"; e) Promoção da propaganda instrutiva;
f)" proteção para o proletariado feminino (...) para, assim, evitar-lhe a
miséria, causa eficaz da prostituição"; g) Incitamento às associações que se
propusessem a instrução e à proteção dos menores e das que se dedicassem à
conversão das meretrizes, afastando-as do vício e aplicando-as ao trabalho
honesto e regular da sociedade47.
No regulamento dos serviços a cargo do Departamento Nacional de Saúde, em 1920,"
foi adotado o critério da prevenção e da cura das moléstias venéreas sem coação
tendenciosa das prostitutas, excluídos os vexames da regulamentação à
francesa"48.
A atuação da Medicina Policial prevista pela regulamentação era ineficaz pois
atingia somente um vigésimo da prostituição, uma vez que as mulheres doentes
fugiam dos exames. Para Moraes, a regulamentação teria razão de ser se
conseguisse evitar a propagação da sífilis, o que não ocorreu. Daí, dever-se dar
um tratamento às afecções contagiosas venéreas das prostitutas e não
culpabilizá-las. "A prostituição deve ser tratada como indústria insalubre (...)
para as quais se decretam medidas higiênicas de defesa coletiva"49.
O saber médico tinha o poder de polícia. A Medicina buscava esquadrinhar a
prostituição em nome de conter os desregramentos. A relação entre Medicina e
Criminologia, portanto, foi a maior possível no tratamento da questão.
Defendia-se ainda uma repressão policial direta à prostituição, principalmente
quanto aos seus "abusos". Nesta direção, entre higienistas, juristas, e outros
profissionais, travou-se um debate quanto ao meretrício dever ser abandonado,
regulamentado ou reprimido. Todavia, essa discussão ficou no nível do discurso
pois, efetivamente, a repressão aberta foi constante.
Chauí comentou a prostituição tratada como caso de polícia: "a sociedade elabora
procedimentos de segregação visível e de integração invisível, fazendo da
prostituição peça fundamental da lógica social. Ela é um caso de polícia do
ponto de vista da segregação tanto quanto do ponto de vista da integração, desde
que nos lembremos que a palavra polícia não significa apenas a vigilância e a
força da ordem, mas também (vinda da palavra grega, pólis, a cidade legislada)
significa civilização (se a palavra de referência for latina, isto é, civitas, a
cidade legislada)"50.
Moraes avaliou que "as mulheres públicas devem estar sujeitas à vigilância
imediata da polícia". Para tanto, considerava necessário um esquadrinhamento
urbano51. Elas deviam, então, residir em determinadas ruas, agrupadas e debaixo
da autoridade de um" responsável pelos insultos praticados em seu bordel contra
a moral, a saúde e a tranqüilidade pública", tornando mais eficaz o controle
pela polícia52.
Segundo Motta, os responsáveis pela visão de que se devia reprimir a
prostituição de forma brutal consideravam-na um crime para o qual se devia
instituir uma pena:" Este sistema, além de ineficaz, encerra uma grande
injustiça," pois a prostituição pressupunha a existência da mulher que se
entregava pelo dinheiro e do homem que a comprava. Dessa forma, a repressão
deveria recair sobre os dois e não somente sobre a parte mais fraca: "Demais se
debaixo do ponto de vista social, é reconhecida a conveniência da prostituição,
toda repressão seria um contra senso"53.
Também Moraes considerou a repressão à prostituição quase sempre unilateral pois
punia somente a mulher que provocava o deboche, deixando de lado o homem que
também era culpado pois existia entre os dois um contrato de locação54. Ao mesmo
tempo, ele entendia a regulamentação policial como atentatória à liberdade e
contraproducente. Contra o quadro, propôs "educação anti-sifilítica dos dois
sexos; facilitação do tratamento das chamadas moléstias venéreas em dispensários
especializados; precaução em volta dos canditatos ao casamento". Além disto"
trata-se de instituir o delito de contaminação intersexual"55.
Alfredo Silveira, em 1915, sugeriu as seguintes medidas de controle: a)
Casamentos possíveis apenas mediante atestado médico negando a existência de
qualquer doença venérea; b) Amas de leite examinadas por médico da saúde
pública; c) Distribuição gratuita de remédios; d) Multar as prostitutas doentes
que continuassem a exercer a" ignóbil profissão"; e) Isolar as mulheres
contaminadas; f) Penas para os sifilíticos transmissores; g) Distribuição de
folhetos sobre a profilaxia da doença; h) Conferências sobre as moléstias; i)
"Fixar a responsabilidade civil e criminal nos casos de contaminação"; j) "Punir
severamente o lenocínio"; k) Educação sexual dos soldados e marinheiros56.
Segundo Moraes, devia-se preservar a liberdade sexual desde que o indivíduo não
prejudicasse a outro ou à sanidade pública. A prostituição, nessa perspectiva,
não era um delito mas devia-se reprimir os abusos: todos "que atentem contra o
pudor público, devem ser punidos, como o são os abusos de outras atividades
humanas", reprimindo-se atos e palavras imorais, livros, folhetos e jornais
obscenos, discussões com expressões torpes em vias públicas, atos de
"libidinagem nos cinemas, nos bondes, nas grandes aglomerações". Para ele, da
mesma forma que com relação a vagabundagem, alcoolismo e lenocínio, as medidas
preventivas e repressivas tomadas" só servirão para atenuar esses deploráveis
efeitos da organização social-econômica e das imperfeições individuais"57.
Vê-se pois que tudo o que perpassava a sexualidade externa à norma burguesa
(família, procriação, propriedade, herança) era criminalizado de uma forma ou de
outra, considerando-se fundamental a existência de diversas formas de
esquadrinhamento. Devido aos "desregramentos sexuais" ocorridos nos bailes
populares, as autoridades baixavam normas disciplinares para eles. Isto também
ocorria nas festas religiosas, principalmente na de São Gonçalo do Amarante, que
as "rameiras" veneravam. As danças profanas, como o batuque, foram proibidas em
1873/1875 por serem consideradas indecentes58.
Em 1897, o Chefe de Polícia de São Paulo, Motta, publicou em seu relatório um
folheto com o título "Prostituição, polícia de costumes e lenocínio", mostrando
as medidas por ele tomadas para tais problemas. Iniciou perguntando como devia
ser tratada a prostituição: abandoná-la de forma que ela aparecesse em toda a
sua" podridão"? Reconhecê-la e regulamentá-la? Reprimí-la como sendo um dos
principais males da humanidade59?
Segundo Motta, "os que opinam pelo abandono da prostituição a si mesma
consideram-na como uma questão de moral individual com que o Estado nada tem que
ver, a menos que ela se manifeste de modo a perturbar a ordem pública, e
prejudicar os direitos de outrém". Para ele, todo ataque à moralidade envolvia
uma perturbação da ordem pública, assim como qualquer ofensa à ordem pública
prejudicava os direitos coletivos. Cada cidadão, portanto, tinha o direito de se
fazer respeitar e não podia ser ultrajado com "exibições impudicas, com as cenas
públicas de deboche, com espetáculos da mais revoltante devassidão e
lubricidade". Nesses termos, os vícios tendiam a alastrar-se caso não se pusesse
uma barreira. A prostituição, mesmo sendo um "mal necessário", não deixava de
ser susceptível de modificações favoráveis à moralidade pública60.
Para o mesmo autor, a atuação da polícia de São Paulo visava não a reprimir as
mulheres públicas mas sim a mantê-las dentro de limites possíveis da decência.
Argumentou ainda que os abusos cometidos por seus subordinados, "inevitáveis,
como são, já pela natureza do serviço, já pela falta de um pessoal de primeira
ordem, não podem autorizar a revogação dessas medidas inquestionavelmente
salutares "61.
Na virada do século, foi prática corrente do aparelho policial fazer com que
prostitutas, vadios, mendigos e bêbados por hábito assinassem "termo de bem
viver". Esse poder de polícia ainda se tornou mais pronunciado na lei 147, de
1902, que dizia que a polícia devia "ter sob sua vigilância as prostitutas,
providenciando contra elas sem prejuízo do processo competente, da forma mais
conveniente ao bem-estar da população e a moral pública"62.
A polícia de costumes foi a forma como se concretizou a repressão aberta à
prostituição. Acompanharei o debate travado na conjuntura sobre a sua eficiência
e implantação.
Para Moraes, tendo uma causa sócio-econômica, a prostituição satisfazia aos
instintos libidinosos e garantia a moral familiar. Entretanto, a polícia de
costumes a tratava como crime. Assim, ele perguntou: qual a utilidade da
intervenção policial na" indústria insalubre da prostituição"? Era ela uma forma
de garantir a" qualidade da mercadoria"? Segundo o autor, mesmo na França, país
de origem da polícia de costumes, com as instituições anexas - dispensário
sanitário e hospital-prisão -, ela sofria severas críticas. A polícia de
costumes não tinha fundamento legal, reprimia unilateralmente, atingindo somente
a mulher. Além disto, era uma forma de "perseguição à gente pobre, ao
proletariado do amor venal", modalidade de repressão capitalista. No Brasil, as
prostitutas ficavam entregues ao arbítrio policial, depedendo da vontade da
autoridade, pois, legalmente, não existia criminalidade em seus atos63.
A Academia Nacional de Medicina chegou à conclusão, em 1890, de que "não é de
polícia de costumes que se deve tratar" mas de inspeção higiênica. Existia,
entretanto, uma atuação concreta da polícia que não estava respaldada por nenhum
artigo do Código Penal. Ela proibia o uso de determinados tipos de roupa pelas
mulheres, bem como que ficassem nas janelas depois de determinada hora64.
Em 1897, Motta, analisando as medidas por ele tomadas com relação à
prostituição, disse que "a polícia de São Paulo não regulamentou a prostituição,
expediu simplesmente instruções preventivas contra os ataques públicos à moral e
aos bons costumes, que pareciam não existir mais nesta Capital". Além disto,
como a polícia era principalmente preventiva, ela teria de "intervir, do modo a
garantir a paz das famílias, o decoro público, a moralidade das ruas".
Finalmente, o jurista e policial afirmou que
"a liberdade individual não é princípio sem restrições. Invocar em favor dos
viciosos os sagrados direitos da liberdade individual, é dar provas de muita
ignorância, é pregar a dissolução dos costumes, é fazer a apologia do crime"65.
Cinco anos depois, o Chefe de Polícia Antônio Godoy deu orientação específica
quanto à prostituição: as meretrizes que estivessem nas janelas e portas das
suas casas, ou nas ruas comportando-se de modo indevido seriam intimadas a
recolher-se; caso desobedecessem, deviam ser encaminhadas à autoridade. Em 1914,
criou-se o "serviço de inspeção de costumes". Em 1915, instituiu-se um arquivo
de prontuário sobre a prostituição, tendo um total de 2.272 prontuários. Em
1920, o Delegado Geral propôs a criação de uma polícia especial de costumes uma
vez que "a repressão ao lenocínio, cancro que vai expandindo suas garras à
medida que a cidade aumenta não é cousa que se possa confiar a todas as
autoridades conjuntamente". Em 1924, com a lei 2.034 criou-se a Delegacia de
Costumes e Jogos. Pelo decreto 4.405-A, de 17/04/1928, todas as delegacias
deveriam ter o livro de registro de prostitutas, que passaram a ser controladas
também pela guarda civil66.
Se a prostituição não se constituía legalmente em crime, apesar de todas as
formas de criminalização que o Estado lhe impunha, a exploração do meretrício,
pelo direito penal, o era. Os indivíduos que praticaram o proxenetismo foram,
portanto, controlados, reprimidos, presos e expulsos.
Alguns juristas, policiais, médicos e outros profissionais que trataram da
prostituição a consideraram um "mal necessário", tolerado
nos centros populosos no próprio interesse da família e da sociedade. A polícia,
porém, tem o dever de regulamentá-la, de localizá-la e de vigiá-la, impedindo
que a sua sombra sejam cometidos atentados à moral pública ou praticado o
lenocínio67.
Para Motta, essa visão de "mal necessário", tolerando e regulamentando a
prostituição, criaria o "caftismo oficial": as mulheres eram recolhidas às casas
de tolerância e entregues a uma mulher de confiança da polícia. Segundo Motta,
era esse o pior sistema de todos pois transformava as mulheres em escravas da
dona da casa. Nesse sistema, elas não podiam sair da casa, não tinham o direito
de escolha, transformando-se numa "máquina" de produzir satisfação para os
homens e dinheiro para a dona da casa68.
Para Aguiar, existiam três fases do proxenetismo: 1) A do gigolô, jovens que
preferiam a sexualidade ao trabalho e estudo, mantendo uma relação diária com
mulheres da vida, sem pagar ou receber, a não ser pequenos presentes; 2) Uma
segunda, ainda caracterizada pela ociosidade, quando, além dos presentes,
recebiam pequenas quantias, a mulher não se apresentava somente como forma de
satisfação sexual, eles abandonavam emprego e estudo, vivendo nos cafés e
cabarés, esperando as mulheres com as quais se relacionavam; 3) A do lenocínio
propriamente, em que não trabalhavam, passavam os dias nos botequins, nos
cabarés, e à noite, depois do trabalho de suas exploradas, iam retirar a féria
do dia. A violência aparecia, então, no relacionamento, pois caso a mulher não
quisesse dar o dinheiro, ela era ameaçada de apanhar ou ser ferida com navalha.
O pior dos proxenetas, nessa avaliação, seria o "judeu", para quem a" mulher é
exclusivamente uma mercadoria", agindo como se estivesse num negócio: o
meretrício devia dar lucro, não havendo sequer o relacionamento sexual com a
mulher, sendo o proxeneta visto como um elemento desestabilizador da
prostituição:" Se o proxeneta fôsse eliminado, as mulheres que se dedicam ao
comércio do meretrício teriam a sua vida melhor organizada e seria muito menor o
volume de prostituição"69.
Com o desenvolvimento urbano de São Paulo, apareceu a figura do cáften
profissional. A ele, estavam ligadas a competitividade e a violência da
prostituição. Buenos Aires e Rio de Janeiro eram as principais cidades do
tráfico internacional de mulheres na América do Sul. A proximidade de São Paulo
em relação ao Rio de Janeiro e o desenvolvimento da cidade atraíam os
exploradores de mulheres. Apesar da grande imigração para São Paulo, somente o
tráfico pode explicar o número de estrangeiras das mais diversas nacionalidades
existentes na prostituição da Paulicéia70.
No Brás, próximo à "Hospedaria de Imigrantes, os cáftens instalavam escritórios
de locação de serviços e aliciavam jovens recém-chegadas e inexperientes para o
meretrício". Em 09/09/1891, a Câmara Municipal de São Paulo, considerando a
existência de "grande quantidade de especuladores que se aboletaram ao redor do
edifício da imigração e que em proveito próprio procuram aliciar os imigrantes e
dar-lhes outro destino, mediante lucros. Considerando que muitos desses agentes
são verdadeiros cáftens, pois negociam com a honra dos imigrantes. Ficam desde
já cassadas todas as licenças para escritórios de locação de serviços"71.
Em 1915, Alfredo Silveira afirmou ser
necessário processar essas rascoas e rufiões, em cujas hospedarias, imundas como
a alma dos torpes donos, são horrivelmente explorados menores de ambos os
sexos72.
Em 1927, São Paulo ainda era rota do tráfico prostitucional. A existência de
mundanas de nacionalidades russa, francesa e polonesa nas estatísticas das
décadas de 10 e 20 só podia ser explicada pelo tráfico, pois praticamente não
houve imigração daquelas nacionalidades para o Brasil73.
Diversas foram as propostas e medidas concretas discutidas por juristas e
criminólogos para controlar e reprimir o lenocínio. De acordo com Moraes, a
repressão ao lenocínio era extremamente difícil pois tratava-se de um comércio
internacional, possibilitado pelo desenvolvimento das comunicações, tornando-se,
portanto, um delito internacional, com um constante tráfico de mulheres brancas
entre Europa, África e América74.
O 5º Congresso Penitenciário Internacional, reunido em Paris em 1895, propôs a"
internacionalização do delito de lenocínio". Segundo os congressistas, era para
Rio de Janeiro e Buenos Aires, as mais populosas cidades da América do Sul, que
o tráfico de prostitutas se voltava, sendo originário de Áustria, Hungria,
Polônia, Itália, Romênia e França. Na Conferência de Paris de 1902, os países
presentes comprometeram-se a uniformizar as suas leis penais quanto ao tráfico
de mulheres. Procurando manter a "ordem pública internacional, a Conferência
facilitou a repressão e protegeu as vítimas dos traficantes". Em 1904, foi
assinado um arranjo administrativo entre diversos países, inclusive o Brasil,
visando à
vigilância nos portos de embarque, nas estações e nas agências de emprego, para
o fim de serem evitados os manejos dos traficantes. (...) Foram fundadas, em
vários países associações de patronato, para proteção das vítimas do tráfico e
para a prevenção dos seus planos criminosos75.
No Brasil, o Código de 1830 não previu o delito de lenocínio. Ele apareceu como
crime no Código de 1890, artigo 278. Considerava-se lenocínio: 1º) prestar
assistência, habitação ou auxílio à prostituição; 2º) induzir mulheres, quer
aproveitando de sua fraqueza ou constrangendo à prostituição. No primeiro caso,
estavam os proprietários de hotéis, casas de cômodos e similares e no segundo
situavam-se os cáftens. A lei 2.992, de 25/09/1915, deu nova redação ao artigo
278 do Código Penal. Segundo Frota Aguiar, a repressão ao lenocínio não devia se
fixar somente naquele que explorava uma mulher mas sim atingir todos os que, de
qualquer forma, colaborassem na prostituição, dela tirando proveito. Dessa
forma, devia-se reprimir todos que, usando de licenças para explorar hotéis, na
verdade criavam casas de tolerância, onde recebiam casais, até mesmo menores,
"que freqüentavam esses antros com o fim exclusivo da satisfação dos desejos
sexuais e para práticas de atos de libidinagem". Tais casas existiam perto dos
locais onde faziam pontos as prostitutas, que ali se hospedavam durante curtos
espaços de tempo numa mesma noite76.
A repressão ao proxenetismo, entretanto, começou antes mesmo de ele ser definido
como crime nos textos da lei. Em 1879, o Chefe de Polícia do Rio de Janeiro
incumbiu o 3º Delegado de fazer sindicâncias "a cerca de certos estrangeiros, já
apelidados cáftens, que viviam, torpemente, da exploração de meretrício". Foram
deportados vinte e um homens. A repressão no Rio levou os rufiões a fugirem para
São Paulo, onde também foram perseguidos77.
O Presidente de Província de São Paulo, em 1879, afirmou que
o vil interesse, que leva a procurar dinheiro por todos os meios, trouxe para
esta cidade especuladores que promovem e metodizam a prostituição como fonte de
lucros. (...) Não podiam ser tolerados nesta Capital cenas e estabelecimentos
que põem à mostra escândalos, e ofendem à decência. O Dr. Chefe de Polícia, a
que a Província deve tão relevantes serviços abriu luta contra os repugnantes
mercadores da prostituição. (...) Os dignos Delegados de Campinas e Santos estão
fazendo diligências com o mesmo fim em seus respectivos Termos, e eu espero que
todos se identificarão no empenho contra a corrupção dos costumes78.
Em 1888, segundo o Chefe de Polícia, os cáftens, na maioria estrangeiros, foram
acusados de atingirem todos os preceitos de moral e bons costumes, recebendo"
mulheres por contrato para se darem à prostituição, auferindo eles vantagens
pecuniárias das taxas estipuladas e sujeitando-as a um regulamento repugnante".
Ele também disse que foram tomadas medidas para acabar com a "conduta
escandalosa das meretrizes nas ruas públicas, obrigando-as a assinarem termo de
bem viver"79.
O Secretário da Justiça, em 1893, afirmou que
embora somente encontre processos crimes de lenocínio em número insignificante,
é certo que esse tráfico imundo e desmoralizador tem tomado a feição de
indústria comercial, tendo sido mister que as autoridades policiais solicitem do
governo o meio extraordinário da deportação contra esses atos deprimentes dos
costumes públicos que ameaçam até a segurança pública e a estabilidade social,
tanto mais quando juntam-se com esse delito, crimes diversos, de feições
diferentes, falsidades e fraudes as mais cambiantes80.
Segundo Motta, em 1897,
a repressão ao caftismo foi logo uma das nossas primeiras preocupações. (...)
Logo aos nossos primeiros passos estabeleceu-se uma demanda de cáftens para o
Rio de Janeiro, para o interior, para Buenos Ayres e Montevidéu, mas mesmo
assim, apesar de atenuado, o caftismo ainda existe e existirá nesta Capital pelo
menos enquanto o poder competente não nos der leis aptas para a sua completa
extirpação81.
De acordo com Fonseca, os rufiões exerciam a sua atividade abertamente,
explorando uma ou mais mulheres. Com a campanha repressiva, eles procuraram
disfarçar-se como negociantes de imóveis, alfaiates e agenciadores de negócios.
Havia entre eles austríacos, russos, polacos e alemães. Quando não estavam
fiscalizando as rameiras, jogavam82.
Prenderam-se por lenocínio em São Paulo, em 1894, 29 pessoas e em 1895, 30. Em
1913, foram movidos 39 processos de expulsão, sendo fichados 35 cáftens, dos
quais 22 eram italianos. No ano seguinte, expulsaram-se do Brasil 11 rufiões e
foram fichados 19 pela polícia de costumes de São Paulo, dos quais 5 eram
italianos, 5 russos e 2 brasileiros; 9 eram solteiros e 8 casados; 5 estavam
empregados e 4 viviam como vendedores ambulantes. Em 1916, processaram-se 5
estrangeiros por caftismo, sendo 4 expulsos. Foram presos por lenocínio 3
pessoas em 1921, 2 em 1922 e 31 em 1923, sendo que em 1928 a Delegacia de
Costumes e Jogos prendeu 21 rufiões83.
Além da prostituição e do lenocínio, diversas foram outras formas de
criminalização da sexualidade. Tratava-se daquilo que a ciência criminal
realmente considerou crime e o Código Penal Brasileiro previu punir. Estavam
incluídos nesse elenco crimes passionais, estupro, homossexualismo e atentado ao
pudor.
Na análise desses atos, a Criminologia fez uma ligação direta com a Psiquiatria
na interpretação de uma sexualidade considerada anormal, ligando loucura e
sexualidade84. Contrapondo-o ao sexo "sadio", os juristas e psiquiatras
procuraram controlar e reprimir o que consideravam sexo "doente". Criminoso ou
louco, o fundamental era que esses "psicopatas" fossem reprimidos. Dentre esses
"doentes", estavam desde o indivíduo que matava por ciúmes até o rapaz que
beijava uma menor, passando pelo homossexual e pelo estuprador.
Os criminólogos constantemente ligavam a vida sexual à criminalidade. Castro
afirmou que
esta preocupação exclusiva pela mulher, esse extremo ardor genital, leva muitas
vezes o homem ao crime, ou para saciar um desejo que se tornou idéia fixa
impulsiva, ou para adquirir dinheiro que lhe permita amores fáceis.
Ele ligou ainda tal "ardor genital" a uma causa patológica, início de loucura ou
uma lesão celebral: "A ninfomania pode conduzir suas infelizes vítimas ao
suicídio e ao crime"85.
Para Castro, o aumento da criminalidade sexual tinha como uma das principais
causas a atitude da própria mulher pois,
dominada pela idéia errônea, subversiva, de sua emancipação, ela faz tudo que si
depende para perder o respeito, a estima e a consideração dos homens.
A mulher moderna, desse ângulo, vivia na rua, discutindo tudo, sem religião,
procurando o luxo, "presa fácil e muita vez até espontaneamente oferecida à
conquista do homem". Dessa forma, a mulher que procurava realizar a sua vida e
sua sexualidade era para aquele autor a origem da criminalidade86.
Os criminólogos associaram o desregramento sexual ao desenvolvimento da classe
proletária, desenvolvendo uma análise na qual concluíram ser a sexualidade de
seus integrantes perversa, sendo o homossexualismo a pior das perversões. Castro
disse mesmo que a fábrica matou a família da classe operária, destruindo os
laços que a ligavam87.
Os especialistas em Criminologia assumiram o discurso psiquiátrico e catalogaram
os indivíduos que cometiam esses crimes contra os "bons costumes" como
perturbados mentais. Dessa perspectiva, os principais tipos de pervertidos
sexuais eram: 1) os espinaes, idiotas completos, cuja prática perversa era o
onanismo, "tal é esta idiotia estragada, esgotada, indiferente a tudo que o
cerca, que se entrega a uma masturbação desenfreada após a idade de 3 anos"; 2)
os espinaes cerebrais posteriores, nos quais prevalecia "o ato instintivo
puramente brutal. A ninfomania e a satiriasis entram neste grupo"; 3) os
espinaes cerebrais anteriores, dentre os quais estavam as perversões
propriamente ditas, os invertidos. Esses eram considerados os mais perigosos
pois desde criança o homem procurava o homem e a mulher a mulher. Para Casper, o
invertido tinha "uma alma de mulher em corpo de homem". Outros juristas e
médicos classificaram os invertidos em natos e acidentais. Os natos, desde a
infância, se comportavam como uma mulher, na adolescência se apaixonavam por um
companheiro e começavam um onanismo recíproco, chegando posteriormente à
pederastia." Os médicos legistas consideram estes indivíduos como verdadeiros
alienados" ou degenerados hereditários. Essa inversão seria ou congênita ou
devida à depravação moral, à perversidade. Completavam esse quadro de "loucos
sexuais" os sádicos, masoquistas, erotômanos, paralíticos, vesânicos,
epilépticos, idiotas e débeis, exibicionistas e fetichistas88.
Foi a partir da segunda metade do século XIX que as ciências voltaram seus olhos
para as "aberrações sexuais", para os amores "contra a natureza", para os"
maníacos" e "perversos."
Interessava à ciência da época analisar esses fenômenos marginais exatamente
para mantê-los à margem, para melhor conservar a integridade e a saúde dos
indivíduos `normais'89.
Um dos objetos do esquadrinhamento criminal da sexualidade era o atentado ao
pudor. Toda a exteriorização da sexualidade devia ser criminalizada, podendo
existir apenas fechada dentro dos muros pois a rua não devia conviver com o
sexo. A Ciência Jurídica, a Medicina e a Psiquiatria eram requisitadas para
enquadrarem a sexualidade que chegasse às ruas como crime e doença.
Para Bouardel o "poder viril" existente entre os 17 e 50 anos começava a partir
daí a decair, sendo principalmente nessa idade que aqueles que levavam uma vida
sóbria começavam a praticar atos de má conduta. Aquele que tinha "enfraquecido o
seu poder genésico" procurava excitantes, estimulantes, isto fora do lar, com a
prostituta,
praticando mercantilmente todos os processo artificiais para reeguer as suas
forças genésicas, e é, ai, que surgem as particularidades sintomáticas da
degenerescência social, da dissolução dos costumes sociais90.
Para os juristas, o pudor estava ligado à dignidade pessoal, ao amor próprio, à
honra e aos costumes, base da sociedade. Dessa forma, criava-se um quadro de
configuração da moral burguesa que devia punir tudo aquilo que fosse considerado
atentado ao pudor. Aí estariam incluidos a ofensa à honra da mulher ou do homem,
a pederastia, o onanismo e "outros tipos asquerosos no comércio ignábil do vício
e da bestialidade". Eram principalmente a mulher, a família e o lar os
principais atingidos pelos "ataques de impudicia", a fim de "saciar paixões
lascivas". Essas atitudes anormais existiriam em função da fragilidade do sexo,
das más companhias, do abandono dos pais e da falta dos "sentimentos da família,
da honra, do trabalho e da grandeza da pátria"91.
Bouardel afirmou que os meios industriais favoreciam os crimes de atentado ao
pudor pois os operários e suas famílias eram promíscuos. "A vida em comum nos
cortiços, nas casinholas, nos lugares estreitos, traz como conseqüência
inevitável a freqüência destes crimes". Os atentados aos costumes seriam,
portanto, crimes "de domícilio", praticados principalmente por parentes92.
Os médicos legistas também utilizaram o seu saber para definir os atos, fatos ou
gestos que "atentam aos sentimentos de pudor que constituem as bases essenciais
da moral pública ou privada"93.
O beijo, além de ser visto como um atentado ao pudor, era entendido pelos
criminólogos como uma questão de saúde pública, propondo-se inclusive "o uso de
um pequeno véu de gaze anti-séptico intreposto entre os lábios dos comparsas
para filtrar os beijos". Ele seria um "fato patogênico". Roberto Lira indicou o
caso de dois rapazes que foram processados por atentado ao pudor numa cidade do
interior de São Paulo pelo fato de darem um beijo numa menor. Estaria o beijo
enquadrado no Código Penal como resultado de "depravação moral e de paixões
lascivas", ou seja, um ato de libidinagem94.
O artigo 266 do Código Penal Brasileiro de 1890 tratou do crime de ultraje
público ao pudor. Foi assim considerado
atentar contra o pudor de pessoa de um, ou de outro sexo, por meio de violência
ou ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral.
Também estava enquadrada naquela situação a prática de "atos de libidinagem" com
menor de idade95.
O artigo 282 do Código Penal englobou "todos os atos de incontinência,
desregramento ou impudicícia, as palavras e os gestos obscenos, quaisquer
exibições escandalosas, inclusive a de figuras e vistas imorais nas casas de
diversões públicas, as inscrições e os desenhos obscenos, a exposição, a fixação
ou distribuição de manuscritos e papéis impressos, litografados ou gravados,
pinturas, cartazes, livros, estampas, debuxos, emblemas, figuras e objetos
contrários ao decoro público e aos bons costumes"96.
Ser homossexual, para esses criminólogos e psiquiatras, era um dos crimes mais
depravados e o homem que escolhesse como parceiro sexual outro homem devia ser
punido, principalmente se esse outro fosse um menor. A sexualidade não tinha,
portanto, direito de escolha, sendo entendida como feita para a reprodução e
para a manutenção da família - e a homossexualidade negava essas duas formas de
afirmação da moral burguesa. A pederastia, além disso, era considerada uma
prática sexual antinatural, contrária a uma sexualidade "sadia" pois o sexo
tinha uma única forma de ser praticado e o coito anal se constituía em aberração
sexual, devendo ser punido. Além disso, os pederastas eram vistos sempre como
criminosos de outras espécies - ladrões, assassinos etc.
A escolha de uma sexualidade que não fosse a reverenciada como normal, além de
ser julgada crime, era considerada causa de outros crimes. Esses "invertidos"
foram vistos como extremamente perigosos, principalmente os prostitutos, "ralé"
dessa" escória". A prostituição masculina, entendida como muito pior do que a
feminina, devia, portanto, ser reprimida de forma ainda mais eficaz. Não se via
nessa prostituição uma forma de trabalho e procura de satisfação sexual e sim um
crime. O homossexualismo masculino foi a forma de sexualidade em relação à qual
a visão dos criminólogos esteve mais enraizada na visão da Psiquiatria, onde
buscaram as origens da criminalidade.
Michael Pollak apontou que
no final do século XIX e no início do século XX, importava justificar ou
combater cientificamente os estigmas destinados a um grupo social designado como
`homossexual', elaborando uma geografia sexual cujos territórios se definiam em
função de sua realização com a natureza97.
Peter Fry e Edward MacRae, por sua vez, assinalaram que
na segunda metade do século XIX, porém, irrompe na Europa e no Brasil toda uma
preocupação médica com a homossexualidade e, de fato, quaisquer relações sexuais
fora do casamento, incluindo a prostituição. Formou-se a idéia de que a `saúde'
da família é dependente, portanto, do controle da sexualidade98.
Fry e MacRae descreveram como um médico do século XIX caracterizou os
homossexuais:
Para Krafft-Ebing, o homossexualismo era ou uma patologia congênita ou uma mera
perversão quando praticado por pessoas não uranistas. Este médico (...) chegou à
conclusão de que os uranistas sofrem de uma mancha psicopática, que mostram
sinais de degenerescência anatômicos, que sofrem de histeria, neurastenia e
epilepsia99.
A homossexualidade acabou sendo categorizada, por diversas correntes do
pensamento científico, religioso ou político daquela época "como, perversão,
crime, desvio". Daí, os homossexuais viverem na clandestinidade principalmente
pelo medo da violência repressiva. Castro afirmava em 1897 que "os médicos
tinham vergonha de se ocupar com tal problema": além da vergonha, a
homossexualidade era entendida como um problema.
No fim do século XIX, o Chefe de Polícia registrou a existência de "3 casos de
pederastia, crime raro em São Paulo". No início do século XX, a Praça da
República já era freqüentada pelos travestis. Em 1921, a 2ª delegacia da cidade
registrou 6 prontuários de pederastas passivos, em 1922, 9, no ano seguinte 13 e
em 1935, 2. Nas décadas de 30 e 40, os prostitutos freqüentavam a Praça da
República, o Parque do Anhangabaú, o Jardim da Luz e a Rua Conselheiro
Nébias100.
Na década de 30, os homossexuais delinqüentes eram enviados pela polícia de São
Paulo para o Laboratório de Antropologia Criminal do Instituto de Identificações
de São Paulo,
onde os médicos levaram adiante suas pesquisas sobre as causas biológicas e
sociais da homossexualidade, com ênfase sobre os biotipos e ambiente social dos
indivíduos em questão101.
Castro avaliou em 1895 que
entre nós a pederastia tem tido grande desenvolvimento. O onanismo anal com as
mulheres, o coito antinatural, está se tornando um costume entre os moços. (...)
Mas a inversão propriamente sexual, o amor do homem pelo homem, tem também
progredido. No tempo do Império acusou-se mais de um político notável deste
vício, uns ativos, outros passivos102.
Referindo-se ao Rio de Janeiro, ele disse que
depois que o novo Codigo Penal da República considerou a pederastia um crime,
todos os anos no fôro desta cidade iniciam-se uns dez ou doze processos por
violação de menores103.
Ele entendeu que a pederastia se devia à loucura, a um vício ou a um
hermafroditismo moral instintivo. Essa "loucura erótica seria um sintoma de um
estado patológico". A inversão seria adquirida, "constitue mais uma enfermidade
da vontade do que uma enfermidade da sensibilidade genésica"104. Os homossexuais
para satisfazerem os seus desejos não teriam barreiras, caindo na criminalidade
- estelionato, abuso de confiança, roubo e assassinato. Parte da criminalização
da homossexualidade masculina foi feita através da repressão aos prostitutos.
Para o mesmo autor, esse meio era
uma sociedade organizada, com sua língua, seu pessoal, sua hierarquia, seu
recrutamento, seu ensino, suas tradições, suas modas, seus hábitos, sua
criminalidade, sua solidaridade, sua psicologia.
Os prostitutos foram por ele divididos em 3 tipos: a) Insubmissos; b) Entretidos
com os que perseguem os transeuntes se oferecendo - os novos eram "petits-jesus"
e os velhos "tias"; c) Os envergonhados, filhos de operários, "caixeiros,
humildes empregados, aprendizes, que a ociosidade, os hábitos estragados da
infância, a influência da habitação nas grandes cidades, a promiscuidade dos
centros operários, o abandono dos pais, predispõem para todos os vícios". Esses
meninos eram sempre seduzidos por uma "tia". Os entretidos eram os que tinham um
amante. As" tias" eram os insubmissos, eles os "jesus".
Esta canalha fornece um grande contingente ao exército da criminalidade. Todo
jesus é mais ou menos um ladrão, apodera-se do que cai sob suas mãos, dinheiro,
jóias, roupas, cartas, papéis de família, etc. O assassinato está longe de ser
raro. (...) O seu principal crime porém é a chantagem. (...) Constituem-se
associações para estas explorações105.
A pederastia, ainda segundo Castro, levava a uma "alteração da personalidade
física, ou seja a efeminização, o indivíduo fica sem energia, sem virilidade".
Havia, finalmente, os casos em que "a inversão sexual é congenita, faz parte
integrante de sua personalidade física e psíquica"106.
O tribadismo (homossexualismo feminino) e a pederastia, segundo os juristas e
médicos, desenvolviam-se mais em hospitais, hospícios, prisões e tropas
militares. Para Tarde, na puberdade, existia uma tênue fronteira entre amizade e
o amor, "os meninos passam das caricias às exibições, às apalpações lúbricas, ao
onanismo recíproco, enfim à pederastia. Curiosidade sensual no começo, gosto
depravado depois". O internato seria "um ninho de pederastia"107.
O tribadismo foi também considerado crime no Código Penal Brasileiro de 1890,
artigo 266, nos casos em que houvesse violência ou ameaças e se a pessoa
corrompida fosse menor de idade. Para os juristas, isto seria uma forma de
proteção à infância: "não é possível que mulheres viciadas corrompam e estraguem
crianças, iniciando-as nessas práticas lésbicas"108.
Diversas foram outras formas de criminalização da sexualidade. Em algumas delas,
a violência apareceu mas o crime a ser punido era muito mais a prática sexual do
que a violência. Considerava-se violência, por exemplo, a atividade sexual com
uma pessoa menor de idade, mesmo que esta tivesse consentido. Tentava-se
controlar, portanto, a sexualidade dos adolescentes para que não se
transformassem em "pervertidos".
Dentre esses delitos catalogados pelos criminólogos, constavam: defloramento,
estupro, rapto, adultério. Em todos eles, estava presente a questão sexual,
sendo ainda analisadas pelos juristas outras práticas como sadismo, incesto e
perda da virgindade.
O defloramento estava previsto no Código Penal Brasileiro, artigo 267, como
crime. Para tanto, fazia-se necessário a cópula com mulher virgem e o rompimento
do hímem, sendo a mulher menor, através de consentimento obtido por sedução,
engano ou fraude. Tratava-se, portanto, de controle da sexualidade da menor,
que, segundo os juristas, era uma proteção para que não se o conduzisse à
perdição e à desonra109. Caso não houvesse cópula, o delito seria o atentado
contra o pudor. Sem o consentimento da mulher, o crime seria estupro110.
O Código Penal de 1890, no artigo 269, definiu como estupro o ato sexual com uma
mulher sem o seu consentimento, ou seja, com a utilização de violência,
diferenciado pois do defloramento consentido. O estupro podia se dar com
mulheres maiores, virgens, casadas, viuvas e prostitutas, sendo assim
considerado todo ato sexual com mulheres sem condições de consentir na relação.
Neste caso, estariam as idiotas e dementes, as ébrias em estado de embriaguez
completa, as reclusas em casas de detenção ou correção, hospitais, asilos etc, e
as menores de 16 anos que "não têm bem nítida a compreensão do ato que afeta tão
profundamente a sua honra e o seu futuro". Também o "abuso com violência de uma
prostituta" era considerado estupro. A mulher casada não podia, entretanto, dar
queixa do marido por estupro, fosse qual fosse a forma por ele utilizada para
vencer as suas resistências ao ato sexual, pois ali não se identificava crime e
sim exercício de direito marital. Entretanto, se existisse uma sodomia conjugal,
haveria um crime a ser punido, o atentado ao pudor. Além da força física, eram
consideradas violência outras formas que privassem a mulher de suas faculdades
tais como o hipnotismo, o cloroformio, o éter e demais anestésicos e
narcóticos111.
De acordo com Castro, a repressão a esses crimes, em São Paulo, era eficiente,
graças à inteligência e à capacidade de seus Presidentes e Chefes de Polícia, o
assunto é já objeto de assíduos cuidados e vai sendo organizado de uma maneira
séria112.
Tanto no defloramento quanto no estupro, a existência de laços de sangue e
parentesto, relações de dependência ou facilidade para a realização do atentado
ou a impossibilidade de casar-se eram consideradas circunstâncias agravantes.
Entre os parentes, estavam englobados pai, irmão e cunhado; nas relações de
dependência, tutor, curador, encarregado de guarda e educação ou que tiver
alguma autoridade sobre a vítima. Na facilidade para o ato, situavam-se o criado
e o doméstico. Na impossibilidade de casar, identificavam-se religiosos e homens
já casados113.
Tanto no crime de defloramento como no de estupro, para o indivíduo ser
processado, era necessário a queixa da vítima. Para Castro, isso não deveria
ocorrer, podendo o promotor público acusar o criminoso mesmo sem a queixa114.
A relação sexual incestuosa não era considerada propriamente um crime.
Entretanto, ela era penalizada como defloramento ou estupro e se a mulher fosse
maior, não houvesse violência e tivesse consentido, não se configuraria como
crime115.
Ainda segundo Castro, a lei devia proteger a propriedade e o capital; a honra de
uma moça era sua propriedade e a virgindade o seu capital, sendo de tal valor
que, quando destruídas, nada podia substituí-las. Outro criminólogo afirmou que
a virgindade não era um capital e sim
o estado de uma pessoa inocente, que tem o coração puro e não conhece os
prazeres sexuais da voluptuosidade. (...) A virgindade, na acepção larga e
evangélica da palavra, não é um capital, é uma virtude. Esta virtude dá à moça
casta, consideração, honra, vantagens incontestáveis116.
Também foi considerado crime pelo Código Penal Brasileiro de 1890, artigo 270, o
rapto, ou seja, retirar do lar doméstico mulher honesta através da violência ou
sedução. Caso a ele se seguisse o defloramento ou estupro, o indivíduo seria
enquadrado também nesses artigos.
Outra forma de criminalidade sexual era o sadismo. Aos sádicos, "não lhes basta
o ato natural do amor. Sentem um desejo invencível de torturar, martirizar,
mutilar o objeto de sua paixão". Castro, citando o livro A Loucura Erótica,
disse que as principais características do sadismo eram:
1º O instinto sexual não fica satisfeito com a Cópula. O desejo transforma-se
rapidamente em furor e conduz à ferocidade, ao assassinato, à antropofagia; 2º
Os criminosos desta espécie deleitam-se em mutilar os órgãos genitais da vítima;
3º Quase sempre os indivíduos desta categoria são hereditários e na autopsia
verificam-se lesões anatômicas do encéfalo, o que indica serem verdadeiros
alienados117.
O Código Penal de 1890, artigos 279 a 281, tratou do adultério, definindo a pena
de prisão de 1 a 3 anos para a mulher adúltera ou para o homem que mantivesse
concubina, bem como para o co-réu. Segundo os juristas, o adultério era crime
porque "ataca a santidade do casamento (...) destrói as afeições da família
(...) deprava e corrompe os costumes". Era preciso, então, preservar a família,
base da sociedade118. O casamento burguês, portanto, tinha que ser conservado,
sendo a família a sustentação da moral burguesa. Dessa forma, o sexo fora do
lar, desde que criasse uma relação que pusesse em perigo a manutenção daquela
instituição, também era criminalizado. A relação sexual de um homem com uma
mulher casada que se encontrasse no bordel, todavia, não era considerada
adultério pois a prostituição, como visto, era julgada "mal necessário" para a
própria preservação da família. Por outro lado, muitos Códigos Penais não
consideravam criminoso o uxoricida, aquele que matasse a mulher em flagrante
adultério, por tratar-se de uma defesa da honra119.
Era condição para configurar adultério a união sexual entre pessoas de sexos
diferentes, "não constituem adultério os atos de tribadismo entre duas mulheres
ou as práticas uranistas de dois homens". Além disto, segundo Carrara, era
necessário ocorrer cópula, "os beijos, as carícias, a própria vênus nefanda não
constituem adultério". Castro não concordava com tais visões, entendendo que
a honra conjugal precisa ser defendida mais pelo pudor e dignidade da mulher do
que pela sanção penal. (...) Não hesito como juiz em considerar adúltera a
mulher que permite ao seu namorado carícias obscenas, que a veja nua, que
pratique sobre o seu corpo todas as libidinagenas, exceto o ato natural da
cópula120.
Também foi criminalizada a cumplicidade com os delitos contra a honra e o pudor:
A criada que mostrar o quarto da vítima. (...) O amigo, que cede a sua casa para
a prática do crime. A mulher recadeira, a alcoviteira121.
Os crimes passionais foram discutidos por juristas e psiquiatras no campo das
relações entre criminalidade e sexualidade. Segundo Lira, havia uma relação
muito grande entre ódio e amor: quando alguém matava outra pessoa que dizia
amar, o que prevalecia era o ódio e para esses "as leis não dão guarida". Mesmo
que se argumentasse que o indivíduo chegou à loucura, ele tinha que ser punido
pois "lugar de louco é manicômio". Se a caracterização do passional fosse a
loucura, ela devia ser controlada pelos substitutivos penais, as medidas de
segurança122.
Os criminólogos debateram sobre a impunibilidade ou não desses crimes
passionais. Tobias Barreto admitia a impunibilidade ao emotivo que supreendesse
a mulher adúltera no leito conjugal. Lima Drummond afirmou que "poder-se-ão
isentar de pena os criminosos passionais, comprovada, por exame pericial, a
impressionabilidade nervosa do seu temperamento". Esmeraldino Bandeira concluiu
que os criminosos passionais têm um" temperamento nevrótico ou epileptóide e de
que o crime pode ser um efeito disfarçado"123.
Os criminólogos associaram os crimes passionais à loucura: o furor do homem
tomado pelo ciúme seria igual ao do alienado. Para Carrara, "as paixões que
levam a violar a lei" não deviam ser consideradas "moralmente nem socialmente,
mas psicologicamente". Moraes afirmou que a paixão era resultado de uma ação
intensa e duradoura, é legítima equivalente de certas psicoses, e que produz
efeitos perfeitamente iguais aos efeitos produzidos por certas formas de
loucura124.
"Mal necessário", criminalizada, equiparada à vagabundagem, confinada,
regulamentada, controlada por políciais e médicos, reprimida: eis o quadro
vivido pela prostituição na São Paulo de 1870 a 1920. Controlados, reprimidos,
presos e expulsos: tais eram os destinos dos proxenetas no mesmo período.
Acusados de perturbação mental, crime e doença: assim eram enquadrados
homossexuais, estupradores e outros responsabilizados por "delitos sexuais" à
época.
Dessa forma, a sexualidade da plebe não-proletarizada era criminalizada,
definindo-se uma moral burguesa, em relação à qual todo desvio era considerado
delito.
Fora da moral burguesa, portanto, não se admitia solução para a sexualidade. Os
olhos de Polícia e Medicina acossavam a plebe não-proletarizada para lhe dizer
que os homens e mulheres ali situados socialmente não estavam livres em nenhum
momento, sequer na intimidade erótica.
Tais olhos revelavam-se ainda mais eficazes porque, qual novo Deus, em nome de
Ciência e Lei, construíam-se como onipresentes, disciplinando todos, em tudo e
para tudo. Criminalizar a sexualidade da plebe não-proletarizada era manter esse
grupo social sob permanente suspeita, procedimento que podia deslocar-se para
outras práticas e outras parcelas da população.
NOTAS
1 MORAES, Evaristo de. Ensaios de Patologia Social. Rio de Janeiro, Leite
Ribeiro, 1921, pp. 238-249. [ Links ]
2 LEAL, Aurelino. Polícia e Poder de Polícia. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,
1918, pp. 181-182. [ Links ]
3 MOTTA, Candido. Prostituição, Polícia de Costumes e Lenocínio. São Paulo,
1897, p. 316. [ Links ]
4 MORAES, Evaristo de. "Prostituição e Infância" In Primeiro Congresso
Brasileiro de Proteção à Infância. Rio de Janeiro, Gráfica Editora, 1925, p. X.
[ Links ]
5 ABREU, Waldir de. O Submundo da Prostituição, Vadiagem e Jôgo de Bicho. Rio de
Janeiro, Freitas Bastos, 1968, p. 19. [ Links ]
6 MORAES, Evaristo de. op. cit., p. X.
7 Sobre a cidade de São Paulo nesse período, consultar: FAUSTO, Boris. Crime e
Cotidiano. A Criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo, Brasiliense,
1983; [ Links ]CRUZ, Heloísa Faria. Trabalhadores em Serviços - Dominação e
Resistência. São Paulo, Marco Zero/CNPq, 1990 (Onde Está a República?).
8 MORAES, Evaristo de. Ensaios de Patologia Social. op. cit., pp. 158-160.
9 ABREU, Waldir de. op. cit., p. 17.
10 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 236-237.
11 Idem. op. cit., p. 75.
12 MORAES, Evaristo de. op. cit., p. 76.
13 Idem, p. 69.
14 Idem, p. 70.
15 Idem, p. 71.
16 Idem, p. 214.
17 FONSECA, Guido. História da Prostituição em São Paulo. São Paulo, Resenha
Universitária, 1982, p. 160. [ Links ]
18 Idem, p. 163.
19 CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: Essa Nossa (Des)Conhecida. São Paulo,
Brasiliense, 1984, p. 80. [ Links ]
20 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 74-75.
21 FONSECA, Guido. op. cit., pp. 67 e 165-166.
22 Relatório do Chefe de Polícia de 1895, pp. 180-181.
23 MOTTA, Candido. op. cit., p. 16.
24 LEAL, Aurelino. op. cit., pp. 183-184.
25 Idem, p. 135.
26 FONSECA, Guido.op. cit., pp. 151-153.
27 Idem, pp. 154-156.
28 MORAES, Evaristo de. op. cit.
29 FONSECA, Guido. op. cit., pp. 65-6 e 186-193.
30 Idem, pp. 187-198.
31 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 139 e 292.
32 CHAUÍ, Marilena. op. cit., p. 16.
33 Relatório do Chefe de Polícia de 1879, pp. 45-46.
34 MOTTA, Candido. op. cit., p. 8
35 Idem, pp. 11-12.
36 Idem.
37 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 149-151 e 177.
38 FONSECA, Guido. op. cit., pp. 168-178.
39 SILVEIRA, Alfredo Baltazar. A Regulamentação do Meretrício. Rio de Janeiro,
Imprensa Oficial, 1915, p. 11. [ Links ]
40 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp 193; 269 e 281-282.
41 SILVEIRA, Alfredo Baltazar. op. cit., p. 20.
42 Idem, p. 23.
43 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 292-293.
44 SILVEIRA, Alfredo Baltazar. op. cit., pp. 24-25.
45 Idem, p. 21.
46 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 270-271.
47 Idem, pp. 271-285.
48 Idem, pp. 271-285.
49 Idem, pp. 162-190.
50 CHAUÍ, Marilena. op. cit., p. 80.
51 Para a análise desse esquadrinhamento, ver: FOUCAULT, Michel. Microfísica do
Poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1982. [
Links ]STORCH, Robert. "O Policiamento do Cotidiano na Cidade Vitoriana". In
Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 5 nºs 8-9, set
1984-abr 1985, pp. 07-33. [ Links ]
52 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 257-258.
53 MOTTA, Candido. op. cit., pp. 06-07.
54 MORAES, Evaristo de. op. cit., p. 250.
55 Idem, pp. 294-296.
56 SILVEIRA, Alfredo Baltazar. op. cit., pp. 28-29.
57 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 302-307.
58 FONSECA, Guido. op. cit., p. 115.
59 MOTTA, Candido. op. cit., pp. 04-05.
60 Idem, pp. 04-05.
61 Idem, p. 15.
62 ABREU, Waldir de. op. cit..
63 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 155-157; 177 e 305.
64 Idem, pp. 270-275.
65 MOTTA, Candido. op. cit., p. 12.
66 FONSECA, Guido. op. cit., pp. 159-63.
67 AGUIAR, Anésio Frota. O Lenocínio como Problema Social no Brasil. Rio de
Janeiro, 1940, pp. 15 e 28. [ Links ]
68 MOTTA, Candido. op. cit., p. 07.
69 AGUIAR, Anésio Frota. op. cit., pp. 15-23
70 FONSECA, Guido. op. cit., pp. 132-135.
71 Idem, p. 135.
72 SILVEIRA, Alfredo Baltazar. op. cit., p. 28.
73 FONSECA, Guido. op. cit., pp. 136-137.
74 MORAES, Evaristo de. op. cit., pp. 317-320.
75 Idem, pp. 321-334.
76 AGUIAR, Anésio Frota. op. cit., p. 27.
77 MORAES, Evaristo de. op. cit., p. 265.
78 Relatório do Presidente de Província de 1879, p. 77.
79 Relatório do Chefe de Polícia de 1888, pp. 27-28.
80 Relatório do Secretário de Justiça de 1893, p. 16.
81 MOTTA, Candido. op. cit., pp. 17-18.
82 FONSECA, Guido. op. cit., p. 145.
83 Idem, pp. 145-148.
84 A respeito dessa ligação, consultar: CUNHA, Maria Clementina Pereira. O
Espelho do Mundo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. [ Links ]
85 CASTRO, Francisco J. Viveiros de. Atentados ao Pudor (Estudos sobre as
Aberrações do Instinto Sexual). Rio de Janeiro, Moderna, 1895, pp. 23 e 40. [
Links ]
86 CASTRO, Francisco J. Os Delitos contra a Honra da Mulher. Rio de Janeiro,
Freitas Bastos, 1932, pp. 21-22. [ Links ]
87 Idem, pp. 22-23.
88 TOLEDO, Francisco Eugênio de. Atentado ao Pudor. São Paulo, Ed. Brasileira,
s./d., pp. 27-30. [ Links ]
89 BRANCO, Lucia Castello. O que é Erotismo. São Paulo, Brasiliense, 1984, p.
49. [ Links ]
90 TOLEDO, Francisco Eugênio de. op. cit., pp. 23-26.
91 Idem, pp. 07-09.
92 Idem, pp. 07-09.
93 Idem.
94 LIRA, Roberto. Polícia e Justiça para o Amor! (Criminalidade Artística e
Passional). Rio de Janeiro, Noite, s./d. [ Links ]
95 TOLEDO, Francisco Eugênio de. op. cit., pp. 42-43.
96 LIRA, Roberto. op. cit., p. 176.
97 POLLAK, Michael. "A homossexualidade Masculina, ou :A Felicidade do Gueto?"
In ARIÉS, Philippe e BÉJIN, André (orgs.). Sexualidades Ocidentais. São Paulo,
Brasiliense, 1985, p. 72. [ Links ]
98 FRY, Peter e MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo,
Brasiliense, 1983, p. 61. [ Links ]
99 Idem, p. 64.
100 FONSECA, Guido. op. cit., pp. 217-222.
101 FRY, Peter e MACRAE, Edward. op. cit., pp. 66-67.
102 CASTRO, Francisco J. Viveiros de. op. cit., p. 263.
103 Idem, pp. 266-267.
104 Idem, pp. 268-73.
105 Idem, pp. 274-277.
106 Idem, pp. 279-281.
107 Idem, pp. 350-352.
108 Idem, pp. 240-241.
109 TOLEDO, Francisco Eugênio de. op. cit., pp. 44-45.
110 CASTRO, Francisco J. Viveiros de. op. cit., pp. 57-74.
111 Idem, pp. 48-49 e 97-125.
112 CASTRO, Francisco J. Viveiros de. op. cit., p. 21.
113 Idem, p. 139.
114 Idem, pp. 171-177.
115 TOLEDO, Francisco Eugênio de. op. cit., p. 67.
116 CASTRO, Francisco J. Viveiros de. op. cit., p. 240.
117 Idem, pp. 97-100.
118 Idem, pp. 41-43.
119 LIRA, Roberto. op. cit., p. 55.
120 CASTRO, Francisco J. Viveiros de. op. cit., pp. 248-249.
121 TOLEDO, Francisco Eugênio de. op. cit., pp. 51-69.
122 LIRA, Roberto. op. cit., pp. 22-54.
123 MORAES, Evaristo de. Criminalidade Passional (O Homicídio e o
Homicídio-Suicídio por Amor). São Paulo, Saraiva, 1933, pp. 25-30. [ Links ]
124 RIBEIRO, Jorge Severiano. Criminosos Passionais. Criminosos Emocionais. Rio
de Janeiro-São Paulo, Freitas Bastos, 1940, pp. 22-53. [ Links ]
<Fonte:
http://74.125.155.132/scholar?q=cache:To45wS9UB6EJ:scholar.google.com/+regulamenta%C3%A7%C3%A3o+da+prostitui%C3%A7%C3%A3o&hl=pt-BR,
29/10/2009>