O STF e a
união estável homoafetiva.
Resposta aos críticos, primeiras impressões, agradecimentos e a
consagração da homoafetividade no Direito das Famílias
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
Elaborado em 05/2011.
Na ausência de proibição expressa à união estável homoafetiva, não se
pode presumir tal proibição. Não há limites semânticos no texto a
impedir o seu reconhecimento.
1. Alguns
Comentários sobre a decisão do STF e resposta a alguns críticos.
A cidadania venceu importante batalha contra o totalitarismo.
Vitória essa incontestável,
na medida em que tivemos uma memorável unanimidade dos Ministros do Supremo:
10x0! (o Ministro Toffoli se absteve por impedimento, pois, enquanto
Advogado-Geral da União, proferiu parecer favorável à procedência da ADPF
n.º 132, julgada conjuntamente com a ADIn n.º 4277, por conexão – mas, como
o parecer foi favorável, podemos considerar como vitória por 11x0!).
No histórico julgamento da
ADPF n.º 132 e da ADIn n.º 4277, o Supremo Tribunal Federal conferiu uma
interpretação sistemático-teleológica ao art. 226, §3º, da CF/88 de sorte a
compatibilizar o referido dispositivo constitucional com os princípios da
igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança
jurídica, reconhecendo que a redação normativa segundo
a qual "Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar..." não traz em si um
óbice ao reconhecimento da união estável homoafetiva.
Perfeita a exegese do
Supremo. Com efeito, como tive a oportunidade de dizer perante a tribuna do
STF em sustentação oral, dizer que "é reconhecida
a união estável entre o homem e a mulher" é diferente de dizer que ela
é reconhecida "‘apenas’ entre o homem e a mulher",
pois o "apenas" não está escrito e, assim, se não está escrito,
não há limites semânticos no texto que
impeçam a exegese constitucional inclusiva pleiteada pelas duas ações,
de sorte a se permitir a perquirição sobre o cabimento de interpretação
extensiva ou analogia, caso se considere as situações idênticas ou, a
despeito de alguma diferença vislumbrada, idênticas naquilo que é essencial,
respectivamente (o advogado da CNBB, que falou logo após minha fala, tentou
me contestar, dizendo que a falta deste "apenas" não poderia
significar necessariamente a procedência das ações – contudo, o nobre
patrono não compreendeu ou não quis compreender o que eu disse, pois eu
afirmei que a ausência do "apenas" afasta
a existência de limites semânticos do texto, de sorte a
permitir que se investigue se a união estável homoafetiva é idêntica ou
análoga à união estável heteroafetiva, de sorte a se permitir a equiparação
pretendida. Logo, a ausência do "apenas" não traz a procedência
automática da tese da união estável homoafetiva, mas permite que se faça a
averiguação de sua identidade ou caráter análogo com a união estável
heteroafetiva, tornando juridicamente possível o pedido formulado –
e a possibilidade jurídica do pedido existe quando não há
proibição/restrição explícita, consoante reconhecido pelo STJ no
REsp n.º 820.475/RJ, em julgado que reconheceu a união estável
homoafetiva, por analogia – valendo ainda citar o maravilhoso voto da
Ministra Nancy Andrighi, seguido pelos demais ministros julgadores, no
REsp n.º 1.026.981/RJ, segundo o qual "O
manejo da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para
alavancar, como entidade familiar, na mais pura acepção da igualdade
jurídica, as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo").
Assim, como também tive a
oportunidade de dizer da tribuna após uma sintética explanação sobre a
evolução do conceito material de família ao longo do século XX, considerando
que a união homoafetiva forma uma família conjugal por
ser pautada pelo mesmo amor familiar que justifica a proteção da
união heteroafetiva pela união estável, tem-se por cabível
interpretação extensiva ou analogia para reconhecer a união estável
homoafetiva, mediante o reconhecimento do status jurídico-familiar
das uniões homoafetivas e, assim, o reconhecimento de que as uniões
homoafetivas se enquadram no conceito constitucional de união estável,
por serem situações idênticas (interpretação extensiva) ou, no mínimo,
idênticas no essencial (analogia), pois o essencial para uma união ser
reconhecida como união estável é ela formar uma família conjugal (OBS:
amor familiar = amor que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, conceito este decorrente
da evolução do conceito material de família, consoante defendo em meu
Manual da Homoafetividade [01] – livro este
citado pelo Ministro Celso de Mello durante o julgamento como "excelente
monografia" acerca do tema, Ministro este que destacou, ainda, minha
participação no julgamento através de sustentação oral, o que me é motivo de
muito orgulho e felicidade, na medida em que os votos do Ministro Celso de
Mello sempre formam verdadeiras monografias jurídicas sobre os temas sobre
os quais ele se debruça).
O julgamento foi memorável
do começo ao fim da leitura dos votos dos ministros do STF, que mostraram
extrema sensibilidade humana na interpretação dos enunciados normativos
constitucionais em análise e na análise do status jurídico-familiar
das uniões homoafetivas. De qualquer modo, deixemos para uma outra
oportunidade o relato sintético dos principais fundamentos de cada voto,
aguardando a disponibilização do inteiro teor de todos eles para eu não
correr o risco de cometer alguma injustiça por omissão de argumentos
relevantes.
Mas, "claro", os derrotados
protestam. A CNBB disse que não mudará seu modo de ver a questão e que não
seria "um voto" que mudaria o conceito de família [8]. Ocorre que
não foi o STF que mudou o conceito de família, foi a
sociedade – como destaquei em sustentação oral, é notório que
saímos do opressor modelo hierárquico-patriarcal
de família conjugal (na qual o homem mandava despoticamente na sociedade
conjugal heteroafetiva) para chegarmos à concepção de família fusional,
que se forma e se mantém apenas se houver afeto romântico na relação
conjugal, para culminar com a família eudemonista, que é a família
que se forma e se mantém unicamente se isso trouxer felicidade a seus
membros [02] (o que é compatível com meu conceito de
amor familiar, ou seja, o amor que vise a uma comunhão plena de
vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura). Logo, o
STF meramente reconheceu que o conceito material
de família se pauta no afeto conjugado à publicidade, durabilidade e
continuidade da união amorosa e que isso independe de o casal ser de sexos
diversos ou de sexos idênticos, donde improcedente a crítica da CNBB (que
evidentemente pode manter sua opinião reacionária e anacrônica; o que ela
não pode é querer impor sua visão àqueles que não compartilham de suas
pré-compreensões/compreensões).
O advogado da CNBB, Dr.
Hugo Sarubbi Cysneiros, declarou à Folha de São Paulo de 06/05/11 que agora
teríamos um modelo constitucional não-discutido na Casa Legislativa e
supostamente contrário à vontade dos legisladores de 1988. Ocorre que
o STF decidiu com base nos princípios constitucionais,
demonstrando que na ausência de proibição expressa à união estável
homoafetiva não se pode presumir tal proibição e que, portanto,
não há limites semânticos no texto a impedir o
reconhecimento da união estável homoafetiva. Ademais, considerando
ser notório que "a lei é mais sábia que o legislador", no sentido
de que não se pode querer presumir/imaginar "vontades" que o legislador não
positivou nos enunciados normativos vigentes (se ele quisesse proibir, que o
tivesse proibido expressamente), bem como o princípio geral de Direito
segundo o qual restrições de direitos devem ser
expressas e o fato de que as uniões homoafetivas se enquadram no
conceito material de família constitucionalmente protegida, tem-se que a
"vontade da Constituição" foi respeitada pelo Supremo Tribunal Federal
– foi respeitada e por ele implementada, pois foi a Constituição quem
proibiu discriminações arbitrárias pela isonomia, a promoção do bem-estar de
todos mediante vedação de preconceitos pelo princípio da não-discriminação e
a necessidade de igual respeito a todos os modelos plurais de vida que não
prejudiquem terceiros, pelos princípios da liberdade e da dignidade da
pessoa humana, donde juridicamente adequada a interpretação
sistemático-teleológica por ele perpetrada, por homenagear os princípios
instrumentais de interpretação constitucionais da unidade
(ausência de antinomias reais entre normas constitucionais, especialmente as
originárias entre si), da concordância prática
(compatibilização da união estável com isonomia, dignidade humana, liberdade
e segurança jurídica) e da máxima efetividade das normas
constitucionais (reconhecimento de duas uniões estáveis – homoafetiva e
heteroafetiva – ao invés de somente uma). Logo, a crítica também improcede.
Noticiou-se, ainda, que o
renomado Lenio Luiz Streck criticou a decisão do STF, sob o fundamento de
que isso seria um tema que caberia apenas ao Parlamento, como na Espanha e
em Portugal, pois não poderia o STF colmatar lacunas que supostamente não
existem, na medida em que a Constituição teria reconhecido que "a união
estável é entre homem e mulher" (sic), bem como que "todo mundo
sabe o que é um homem, todo mundo sabe o que é uma mulher" (sic
[03]). Conheço esta posição de Lenio Streck há
tempos, tanto que já publiquei artigo refutando especificamente os seus
argumentos [04] na Revista de Direito das Famílias e
Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)
[05]. Nesse sentido, a posição de Streck é
simplesmente inaceitável. A uma porque a Constituição não disse que a união
estável existe "apenas" entre homem e
mulher, pois dizer que ela é reconhecida entre homem e mulher é diferente de
dizer que ela é reconhecida "apenas" entre
homem e mulher, como supra demonstrado e reconhecido pelo STF. Logo, a
lacuna efetivamente existe e não há limites semânticos no texto a
impedir a exegese adotada pelo STF. Cabe notar, ainda, a obviedade segundo a
qual não se está dizendo que a expressão "entre o homem e a mulher"
abrangeria a união homoafetiva, mas que esta expressão não tem o cunho de
proibir o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo porque
o simples fato de o enunciado normativo citar uma situação fática (como o
fato heteroafetivo, a união entre homem e mulher) não significa
"proibição implícita", pois se assim fosse a analogia seria eternamente
e desde sempre inviabilizada, pois os enunciados normativos em geral citam
uma situação fática em sua redação – mesmo porque proibições implícitas não
existem no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro por força do
art. 5º, inc. II, da CF/88, que estabelece a necessidade de
enunciado normativo expresso para que se caracterize uma proibição/restrição
no Direito Brasileiro.
Ademais, a posição de
Streck simplesmente dá uma carta branca para a opressão de direitos
fundamentais pelo hipócrita silêncio do legislador... Estamos diante de tema
de direitos fundamentais, Prof. Lenio Streck! Direito fundamental à isonomia
de direitos, à igual consideração pela legislação em sua interpretação
sistemático-teleológica ante a ausência de proibição explícita à exegese
constitucional em prol da união estável homoafetiva – e direitos
fundamentais não são passíveis de deliberação por voluntarismos
majoritários, como é basilar na teoria constitucional do mundo inteiro...
Streck sabe que o juiz não é mais a mera boca que pronuncia as palavras da
lei, como defendia Montesquieu, donde a literalidade normativa não é
determinante quando não traz uma proibição/restrição explícita. Streck sabe
e defende em suas obras [06] que norma não se
confunde com enunciado normativo, sendo resultado da interpretação do
enunciado normativo. Ora, se sabe de tudo isso, é simplesmente inexplicável
sua postura (embora não-admitida) flagrantemente literalista (apego à letra
em detrimento do conteúdo) e originalista (busca da "vontade" do
legislador), pois por mais que devamos deixar que o texto nos diga algo
(trecho das obras de Streck), o texto do art. 226, §3º não nos traz
proibição alguma – ele não traz nenhum elemento literal ou teleológico que
impeça o STF de reconhecer que há uma lacuna normativa sobre o tema. O que
dito texto nos diz é que a Constituição reconheceu expressamente a
união estável entre o homem e a mulher, mas não diz que ele teria
proibido a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo. Ainda que se
reconheça que, pela tradição, não se teria imaginado a união
homoafetiva quando da elaboração do §3º do art. 226 da CF/88, o notório
fenômeno da mutação constitucional permite que a
norma oriunda da interpretação do enunciado normativo mude ao longo dos
tempos sem que haja necessidade de alteração do texto quando a razão
crítica demonstre o descabimento da interpretação restritiva que passa
a sofrer evolução, como a evolução da jurisprudência da Suprema Corte dos
EUA prova pela forma como era admitida a negativa de direitos a negros
relativamente àqueles concedidos aos brancos para, posteriormente,
garantir-se os mesmos direitos aos negros desde que estes não utilizassem o
mesmo espaço utilizado pelos brancos (doutrina do "separados, mas
iguais") para, nas últimas décadas, reconhecer os mesmos direitos nos
mesmos espaços públicos – tudo isso sem nenhuma alteração do texto
constitucional estadunidense. Assim, no presente caso, considerando que a
razão crítica exige a equiparação de tratamento jurídico das uniões
homoafetivas relativamente àquele conferido às uniões heteroafetivas por
ambas formarem famílias conjugais quando atendidos os requisitos da
publicidade, continuidade e durabilidade, e considerando a ausência de
proibição expressa e de limites semânticos no texto a impedir a união
estável homoafetiva, esta deve ser reconhecida mediante o reconhecimento da
ausência de proibição no texto constitucional a esta exegese (pois a mera
citação do fato heteroafetivo no enunciado normativo do art. 226,
§3º, da CF/88 não pode ser interpretado desta forma, ao menos nos dias de
hoje, de reconhecimento da igual dignidade da união homoafetiva
relativamente à união heteroafetiva), como importantes decisões judiciais ao
redor do mundo (v.g., Supremas Cortes da África do Sul, do Canadá e
de Massachusetts/EUA [07]) sendo descabidas as
colocações de Streck sobre o tema – afinal, como bem diz o título de outro
excelente artigo que criticou a posição de Streck sobre o tema,
interpretar a Constituição não é ativismo judicial, tendo o
STF meramente identificado direitos já existentes/decorrentes da própria
Constituição [08].
Sobre a posição de Ives
Gandra Martins, que disse que "Pessoalmente sou contra o casamento entre
homossexuais, não contra a união. A união pode ser feita e tem outros tipos
de garantias, como as patrimoniais. Minha posição doutrinária, sem nenhum
preconceito contra os homossexuais, é que o casamento e a constituição de
família só pode acontecer entre homem e mulher. Mas o Supremo é que manda e
sou só um advogado" [09], devem ser feitos os
seguintes comentários: o mesmo parte de uma opinião arbitrária de dizer que,
a seu ver, família seria formada "apenas" entre um homem e uma
mulher, arbitrariedade decorrente dele não se dignar a explicar porque
somente a união heteroafetiva poderia ser qualificada como família, sem que
a união homoafetiva o pudesse – não é por questão de capacidade
procriativa, pois casais heteroafetivos estéreis, que não a possuem,
não deixam de ser reconhecidos como entidades familiares; motivos
religiosos são irrelevantes por força da laicidade estatal, que veda a
consideração de argumentos religiosos pelo Direito, pois isso caracterizaria
"aliança" com a religião em questão, algo vedado expressamente pelo art. 19,
inc. I, da CF/88; voluntarismo majoritário também não pode ser
argumento, por ser basilar na teoria constitucional que mesmo a maioria deve
se submeter às normas constitucionais enquanto não alterá-las ou convocar
nova constituinte para suprimi-las caso se trate de cláusula pétrea. Logo,
sendo a união conjugal entre casais homoafetivos uma entidade familiar por
pautadas pelo amor familiar (amor que vise a uma comunhão plena de
vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura), tem-se por
arbitrária/inaceitável a posição de Ives Gandra. Pelo menos ele reconhece a
autoridade do Supremo Tribunal Federal...
2. Impressões Iniciais.
Ao reconhecer a união
homoafetiva como união estável constitucionalmente protegida, o Supremo
Tribunal Federal garantiu quase completamente a isonomia de direitos entre
casais homoafetivos relativamente a casais heteroafetivos. Diz-se "quase"
porque se sabe que o casamento civil garante um pouco mais de direitos que a
união estável pela forma como ambos os regimes jurídicos estão
regulamentados pelo Código Civil, em especial no que tange à sucessão
hereditária (o cônjuge é herdeiro necessário, o companheiro não; o cônjuge
tem maior quinhão hereditário que o companheiro etc). Logo, a isonomia ainda
não está completamente satisfeita com a situação, embora cumpra dizer que o
STF não era obrigado a entrar no debate sobre o casamento civil
homoafetivo por terem as ações feito pedidos unicamente no que tange ao
reconhecimento da união estável entre casais homoafetivos (questão
formal, pela vinculação necessária do julgamento aos pedidos das ações).
Por outro lado, agora que o
STF reconheceu que a união homoafetiva constitui uma família/entidade
familiar, não há mais nenhuma justificativa jurídica para que se
negue o direito de casais homoafetivos consagrarem sua união pelo
casamento civil. A uma porque o §3º do art. 226 da CF/88 diz
que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, donde,
sendo a união homoafetiva uma união estável, deve ter a si reconhecido o
direito à conversão em casamento (argumento formal – a Constituição
obriga o reconhecimento da possibilidade da conversão da união estável
em casamento). A outra por uma questão de lógica: o casamento civil e a
união estável são regimes jurídicos destinados a proteger/regulamentar as
famílias, donde, sendo a união homoafetiva uma família, ela deve ter a si
garantidos tanto o casamento civil quanto a união estável. Não faz sentido
jurídico nenhum dizer que a união homoafetiva é família e constitui uma
união estável constitucionalmente protegida, mas não poderia ser consagrada
pelo casamento civil, pois, repita-se, tanto o casamento civil quanto a
união estável destinam-se a proteger/regulamentar as famílias conjugais,
donde é contraditório o não-reconhecimento do casamento civil homoafetivo
quando se reconhece a união estável homoafetiva (afinal, a redação
constitucional sobre união estável e casamento civil é análoga relativamente
à menção a homem e mulher – em ambos os casos, ela cita este fato
heteroafetivo sem, contudo, proibir o reconhecimento do fato
homoafetivo como casamento civil ou união estável).
Da mesma forma, a
adoção conjunta por casais homoafetivos agora deverá ser
obrigatoriamente deferida, pois a legislação diz que podem adotar
conjuntamente os cônjuges e os companheiros – e companheiros
é o termo técnico do Direito para designar os integrantes de uma união
estável, que o Supremo disse existir em casais homoafetivos pautados
por uma relação pública, contínua e duradoura.
Minha única preocupação
decorre da observação de alguns Ministros do STF no final do julgamento, de
que o Congresso não está proibido de legislar sobre o tema (o que é
evidente) e que pode regulamentar as especificidades de cada uma das uniões.
Embora somente três ministros (Lewandowski, Gilmar Mendes e Peluso) tenham
demonstrado alguma "preocupação" com os efeitos da decisão (que Gilmar
Mendes disse serem "imprevisíveis"), donde estariam vencidos no que tange a
eventuais restrições aos direitos das uniões estáveis homoafetivas
relativamente às heteroafetivas naquilo que eventualmente considerem
"indispensável" a diversidade de sexos (consoante voto do Ministro
Lewandowski), o Ministro Ayres Britto, relator e autor de voto que garante a
"absoluta igualdade" entre as uniões estáveis homoafetiva e
heteroafetiva, declarou que abriram-se as portas aos homoafetivos mas não se
fecharam as portas ao Congresso, para regulamentar o tema. Será que o STF
terá sinalizado a possibilidade de concessão de menos direitos à união
estável homoafetiva relativamente à união estável heteroafetiva?
Não parece ser o caso. É
claro que, sendo a igualdade material o regime do tratamento distinto das
situações desiguais, poderia ser admitida a regulamentação distinta no caso
de se reconhecer que haveria alguma diferença relevante entre a união
estável homoafetiva relativamente à união estável heteroafetiva. Mas cabe
lembrar que qualquer regulamentação diferenciada terá que passar
pelo crivo dos testes constitucionais da isonomia, da razoabilidade e da
proporcionalidade, o que supõe nova análise de sua
(in)constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal se vier a existir.
Algumas situações, contudo, podem ser adiantadas neste momento: será
inconstitucional qualquer proibição de adoção conjunta e de conversão em
casamento civil por parte dos casais em união estável homoafetiva.
Reitere-se:
Sobre o casamento civil,
sob o aspecto formal o casamento civil homoafetivo deve ser reconhecido
porque a Constituição obriga o reconhecimento da possibilidade de conversão
da união estável em casamento civil. Sob o aspecto material, sendo a família
conjugal o objeto de proteção do casamento civil e da união estável, o
reconhecimento do status jurídico-familiar da união homoafetiva
exige que a ela seja reconhecido o direito tanto ao casamento civil quanto à
união estável (a única hipótese de união estável que não se convertia em
casamento em nosso ordenamento jurídico era aquela de união estável entre
pessoa separada judicialmente, mas não divorciada, o que se justificava
porque a pessoa em questão ainda não estava divorciada, donde a vedação da
bigamia impedia essa conversão em casamento enquanto não houvesse o divórcio
do companheiro que se encontrava separado judicialmente, mas ainda casado –
nada que se possa equiparar à união estável homoafetiva de pessoas
solteiras, em especial porque a hipótese narrada não existe mais, em razão
da extinção da separação judicial por força da Emenda Constitucional n.º
66).
Sobre a adoção conjunta,
ela também deve ser reconhecida tanto por um aspecto formal quanto pelo
aspecto material. Formalmente, a legislação admite a adoção conjunta por
companheiros, ou seja, pelo casal que se encontra em união estável,
logo, há permissão explícita à adoção conjunta pelo casal homoafetivo que se
encontre em união estável. Ademais, materialmente falando, considerando que
diversas pesquisas psico-sociais já demonstraram que o fato de uma criança
ou adolescente ser criado(a) por um casal homoafetivo não lhe traz nenhum
prejuízo relativamente a uma criança ou adolescente criado(a) por um casal
heteroafetivo, por se adequarem aos ambientes e convívios sociais de forma
análoga em ambos os casos, e que isso não traz nenhuma influência na
orientação sexual da criança ou do adolescente [10]
(o que sequer deveria ser investigado, pois é profundo preconceito
"preocupar-se" com o fato de a criança ou adolescente vir a se descobrir
homossexual, ante a igual dignidade entre homossexualidade,
heterossexualidade e bissexualidade), tem-se por inexistente qualquer
prejuízo a crianças e adolescentes pelo simples fato de serem criados(as)
por um casal homoafetivo pela mera homoafetividade conjugal de dito casal,
donde ausente motivação lógico-racional a permitir a discriminação da união
homoafetiva relativamente à união heteroafetiva no que tange à possibilidade
de adoção conjunta, visto que o princípio da integral proteção da criança e
do adolescente (art. 227 da CF/88) não se encontra prejudicado nesta
hipótese.
Tratei aqui do casamento
civil e da união estável pois foi isto que me veio à mente quando ouvi os
Ministros Lewandowski, Gilmar Mendes e Peluso mostrarem "preocupação" com a
abrangência da decisão do STF, na medida em que, embora isso seja pura
elucubração de minha parte (pois eles expressamente disseram que
deliberadamente não fariam elucubrações sobre o que "teria que ter", de
forma "indispensável", a diversidade de sexos), esses são temas que se sabe
trazerem muita polêmica.
Essas são as primeiras
considerações que tenho a fazer sobre o histórico julgamento do Supremo
Tribunal Federal na ADPF n.º 132 e na ADIn n.º 4277.
3. Agradecimentos e
Conclusão.
Gostaria de finalizar com
alguns agradecimentos.
Agradeço aos
Ministros do Supremo Tribunal Federal pelos corajosos votos que,
superando a letra fria da Constituição, realizaram a interpretação
sistemático-teleológica que compatibilizou as normas constitucionais
relativas à união estável com aquelas atinentes à isonomia, dignidade da
pessoa humana, liberdade e segurança jurídica. Certamente não era a exegese
mais fácil. Mais fácil era fazer como Lenio Streck, que se apegou à mera
literalidade normativa para ver uma proibição/restrição que não existe
[11]. Mais fácil era esse legalismo cego
avalorativo de apego à mera literalidade da Constituição para
reconhecer como juridicamente possível apenas aquilo que está escrito. Mas
não foi esta a postura do STF, que em julgado corajoso, fez aquilo que o
doutrinador britânico Neil MacCormick diz ser a função do
juiz: o juiz deve buscar a justiça, mas uma justiça de acordo com a lei
[12], o que aceitamos no sentido de que a
concepção de justiça do intérprete não pode afrontar os enunciados
normativos vigentes na legislação – e foi isso que fez nossa Suprema Corte
neste caso. Fez justiça dentro daquilo que permitem as normas
constitucionais em uma adequada interpretação sistemático-teleológica, o que
é algo que sempre merece aplausos, pois quem milita nos fóruns e tribunais
em geral sabe que muitos juízes se escondem na letra fria da lei
quando se deparam com temas polêmicos, escondendo-se em silogismos cegos
avalorativos da lógica "premissa maior-premissa menor-conclusão" que
não se atenta para a teleologia, para os valores que inspiram as normas/os
enunciados normativos em análise.
Ratifico, ainda, as
seguintes palavras do jornalista Cláudio Brito [13],
em homenagem aos Ministros Ayres Britto e Celso de Mello, bem como aos
demais ministros do STF:
Carlos
Ayres Britto, o relator, e Celso de Mello, um dos últimos a votar,
arrasaram, deram show de erudição e discernimento.
Britto foi o condutor de todo o Plenário e trouxe os argumentos mais fortes
em favor da tese que deu ao tema uma interpretação conforme a Constituição,
ainda que, na Carta e no Código Civil, esteja, com todas as letras, apenas a
união estável entre homem e mulher como equiparável à família. Ficou muito
claro o rumo desenhado por Ayres Britto, quando enfrentou com os princípios
fundamentais de nosso maior diploma legal a aparente dificuldade em vencer o
texto constitucional.
Liberdade,
direito à não discriminação, igualdade, dignidade e outros valores foram
trazidos ao debate e o caminho a percorrer escancarou-se.
Os demais reforçaram o esboço. Completou-se a obra com a
clareza e o brilho a que estão acostumados os que acompanham o trabalho de
Celso de Mello.
‘As relações
homoafetivas são marcadas pelo amor, afeto e solidariedade’, disse o
ministro mais antigo de nossa Corte Suprema. Os fundamentos
explícitos ou implícitos na Constituição, que buscou para alinhavar o voto
cristalino que produziu, mais que todos os outros, deram ao julgamento o
conteúdo de compreensão da realidade que ainda pudesse faltar.
[...]
O afeto está
reconhecido como a base de tudo. O afeto como sinônimo ou como expressão do
amor.
E a
solidariedade completa maravilhosamente o tripé em que se assentam relações
que transcendem a sexualidade. Afeto é o carinho que temos por quem amamos,
é uma disposição de alma, um sentimento.
Amizade e simpatia estão aí, no mesmo rol. Possibilidades de relação humana
construtiva, digna, merecedora de acolhimento pelo Direito.
Ninguém pode
ser privado de seus direitos ou sofrer qualquer restrição de ordem jurídica
devido à sua orientação sexual. Todos têm
direito de receber a mesma proteção das leis e do sistema jurídico. Não se
pode admitir a reprise do acontecido com um soldado, veterano do Vietnã,
que, depois de ser condecorado por atos de heroísmo, foi expulso do exército
americano por viver em companhia de outro rapaz. Luís Barroso, advogado que
defendeu na tribuna a juridicidade das relações homoafetivas, recordou a
frase dramática daquele moço guerreiro: "Deram-me uma medalha por matar dois
homens. Expulsaram-me do exército por amar outro homem".
Recolho de outro
ministro, Marco Aurélio, síntese razoável do julgamento
histórico: ‘O Brasil está vencendo a luta desumana contra o
preconceito. O Estado existe para auxiliar os indivíduos na
realização dos respectivos projetos de vida, não impedir. É obrigação
constitucional do Estado reconhecer o direito familiar e a finalidade
jurídica das uniões homoafetivas’. (grifos nossos)
Agradeço, também, a dois
juristas em especial: Maria Berenice Dias e Luís Roberto Barroso.
Primeiramente, a
Maria Berenice Dias. Ela foi a primeira jurista renomada a defender
doutrinária e jurisprudencialmente o status jurídico-familiar das
uniões homoafetivas, tanto em sua obra "União Homossexual. O Preconceito
& a Justiça" (depois renomeada para "União Homoafetiva. O
Preconceito & a Justiça"), na qual cunhou o termo homoafetividade
para destacar o caráter afetivo-conjugal das uniões amorosas entre pessoas
do mesmo sexo, de sorte a superar o preconceito segundo o qual uniões
homossexuais seriam pautadas unicamente em desejos de luxúria sexual e
nunca no amor/afeto genuíno, quanto em seus acórdãos na qualidade de
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Foi extremamente
criticada por isso por pessoas reacionárias e preconceituosas, que diziam
que uma desembargadora não teria que se "meter com isso", em frase
cujo preconceito se destaca por si. Mas não se deixou abater. Fez história
ao consagrar o termo homoafetividade no vocabulário jurídico
(notório na doutrina e na jurisprudência) e, agora, nos dicionários (como o
famoso Dicionário Aurélio, a partir de 2011), bem como por incentivar
juristas do país inteiro a se debruçarem sobre o tema e defenderem o
status jurídico-familiar da união homoafetiva (situação na qual me
incluo, pois embora fosse defender o tema de uma forma ou de outra, a obra
de Berenice é uma ode contra o preconceito e é uma fonte indispensável para
quem se debruça sobre o tema dos direitos de casais homoafetivos – sendo que
me é motivo de muito orgulho ter meu livro prefaciado por Berenice e por ela
ter dito, no prefácio, que meu livro é "um verdadeiro coroamento de toda
uma trajetória de avanços e conquistas", em referência às teses e
julgados vanguardistas nele constantes, bem como pela menção de que, até
aquele momento, "não havia surgido nenhum trabalho que abordasse o tema
com todos os seus desdobramentos, de modo a evidenciar o surgimento de um
novo ramo do Direito: Direito homoafetivo" e pela afirmação de que
"A análise do tema sob o âmbito constitucional marca o diferencial desta
obra. O estudo dos princípios fundamentais e a perfeita identificação dos
meios de colmatar as lacunas deixadas pelo legislador dão um norte seguro a
evidenciar que sequer são necessárias mudanças legais para inserir as uniões
homoafetivas no âmbito de proteção do direito das famílias e direito
sucessório" [14]. Berenice fez história ao ter
seu neologismo homoafetividade acolhido pelo Supremo Tribunal
Federal, citado diversas vezes por quase todos os ministros (não me recordo
se o Ministro Gilmar Mendes a ele fez referência verbal, mas se não tiver,
salvo engano terá sido o único). Enfim, se chegamos aonde chegamos, devemos
muito a Berenice, que inclusive se aposentou e saiu do conforto da
estabilidade de desembargadora para advogar em prol da causa, com escritório
especializado em Direito Homoafetivo, de sorte a ajudar a inundar o
Judiciário com ações que visem o reconhecimento dos direitos dos casais
homoafetivos e da comunidade LGBT em geral. Devemos muito a Berenice porque
foi sua luta que plantou as sementes que possibilitaram chegarmos ao STF com
uma chance real de vitória e termos uma decisão unânime do STF sobre o tema.
Sem Berenice, a luta certamente teria sido muito mais árdua.
Agradeço, ainda, ao
Eminente Professor Luís Roberto Barroso. Constitucionalista
de primeira grandeza, assumiu a causa como sua ao elaborar seu fenomenal
parecer "Diferentes mas Iguais. O Reconhecimento Jurídico das Uniões
Homoafetivas no Brasil", no qual aplicou sua hermenêutica
constitucional inclusiva e vanguardista ao tema para reconhecer a união
homoafetiva como entidade familiar e como união estável constitucionalmente
protegida pela aplicação direta dos princípios constitucionais ou,
alternativamente, por analogia, com base nos princípios da isonomia, da
dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica. Foi o
citado parecer que inspirou a petição inicial da ADPF n.º 132 e da ADIn n.º
4277 – sendo que me causou surpresa ele não constar do processo, o que me
fez elaborar petição sintetizando seus argumentos e juntando-o, juntamente
com parecer-representação análogo assinado por diversos Procuradores da
República, entre os quais o ilustre Daniel Sarmento [15].
Ademais, o Professor Barroso participou do julgamento, realizando
sustentação oral em nome do Governador do Rio de Janeiro, interrompendo seus
estudos nos EUA para participar deste histórico julgamento. Com isso, não há
como deixar de comparar a atuação do Professor Barroso com a atuação do
Eminente Constitucionalista Lawrence Tribe, renomado constitucionalista
estadunidense que emprestou seu prestígio à luta judicial em prol da
inconstitucionalidade da criminalização da sexualidade homoafetiva (a
chamada "sodomia homossexual") e da inconstitucionalidade da
discriminação arbitrária, pautada em meros moralismos majoritários, a LGBTs
em geral. Tribe, que é heterossexual, realizou sustentação oral perante a
Suprema Corte dos EUA no caso Bowers vs. Hardwick e apresentou
memorial de amicus curiae em outros dois julgados sobre direitos de
LGBTs – Romer vs. Evans e Lawrence vs. Texas (no primeiro,
com derrota; nos outros dois, com vitória [16]).
Enfim, a comparação se dá porque nos EUA Tribe é um jurista heterossexual
reconhecido como um renomado constitucionalista e defensor dos direitos
humanos que emprestou seu prestígio em prol da luta contra uma injustiça
[17] – e é assim que vejo a atuação do Professor
Luís Roberto Barroso neste caso. Ele não tinha obrigação nenhuma de defender
a união homoafetiva em sustentação oral perante o STF, mesmo com seu parecer
favorável, mas o fez. Evidentemente o mesmo deve ser dito quanto a
Maria Berenice Dias e a Oscar Vilhena Vieira, este
último também um renomado professor de direitos humanos, que também
realizaram sustentações orais no processo. Todos são heterossexuais que
abraçaram a causa da homoafetividade na luta contra a injustiça
homofóbico-heterossexista oriunda da negativa do status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas. É claro que é importante que os
próprios membros da minoria estigmatizada se defendam diretamente (o que,
aliás, sempre me impeliu a participar deste julgamento). Mas a existência de
pessoas que lutam com louvor por causas que não são suas é motivo de
celebração, pois nos traz esperança de que o mundo tem salvação.
Agradeço também ao
Dr. Fernando Quaresma de Azevedo, amigo e aliado a quem muito
agradeço pela confiança ensejadora de minha participação neste julgamento
histórico representando a Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São
Paulo (AIESSP), por ele presidida. Aliás, Fernando foi o advogado que
elaborou e assinou a ADIN n.º 3300, juntamente com
Felipe Camargo de Araujo ecom Carolina Terrão Bolla
(então estagiários), na qual o Ministro Celso de Mello, apesar de extinguir
a ação por questões formais, consagrou o debate por afirmar que concordava
com o mérito da pretensão de reconhecimento da união estável homoafetiva,
por analogia. Nesse sentido, também o Ministro Celso de Mello
merece um especial agradecimento, pois ele não era obrigado a tecer tal
manifestação de mérito, por ter entendido que a ação deveria ser extinta.
Contudo, seu espírito humanista e contrário a injustiças certamente o
impeliu a tecer tais considerações de mérito, que muito ajudaram na evolução
da compreensão doutrinário-jurisprudencial destes últimos anos sobre o tema
(sua decisão na ADIN 3300 foi proferida em 2004).
Como disse no início,
a cidadania venceu importante batalha contra o totalitarismo
daqueles que não aceitam que uma pessoa seja feliz de acordo com seu próprio
modo de ser. Outras batalhas em defesa das minorias sexuais
certamente virão, mas essa vitória é paradigmática e histórica. É com muito
orgulho que posso dizer que participei deste histórico julgamento, mediante
sustentação oral representando a Associação de Incentivo à Educação e Saúde
de São Paulo (AIESSP).
Autor
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
Especialista em Direito
Constitucional pela PUC/SP. Mestre em Direito Constitucional pela
Instituição Toledo de Ensino/Bauru. Advogado - OAB/SP
(Fonte: http://jus.uol.com.br/revista/texto/19086/o-stf-e-a-uniao-estavel-homoafetiva)