O mito judaico
diz que o deus criador deu ao homem inicialmente apenas alimentos vegetais;
depois do dilúvio universal, autorizou-o a comer de tudo que vive e move sobre a
terra, exceto o sangue dos animais; mas ao tomar os hebreus como seu povo
seleto, separando-o dos outros povos, fez também uma separação entre animais,
indicando de quais poderiam comer e de quais não poderiam, e os
proibiu
completamente de comer sangue. O Cristianismo primitivo, ao acabar com a
separação de povos, eliminou também a separação de alimento; porém ainda houve
instrução para não comer sangue. Daí, o fundamento utilizado por alguns
religiosos atuais para não receber transfusão de sangue, embora algo bem
diferente de comer sangue de animal.
A estória
relatada no Gênesis dá a entender que, ao primeiro casal, o deus criador deu
como alimento apenas os vegetais. Pois, além de não haver nenhuma menção
do homem alimentando-se de carne antes do dilúvio universal, está escrito que,
após o tal dilúvio, Yavé teria dito a Noé "Tudo o que se move e vive
ser-vos-á para alimento; como vos dei a erva verde, tudo vos dou agora"
(Gênesis, 9: 3 - Tradução Almeida revisada e atualizada). Mas uma
restrição teria sido imposta: "A carne, porém, com sua vida, isto é, com
seu sangue, não comereis." (Gênesis, 9: 4).
Afirma a tal
escritura sagrada que, mesmo depois de ter destruído quase toda a humanidade por
causa da maldade do homem, os descendentes da família escolhida se tornaram maus
também. Então o deus teria escolhido um semita chamado Abrão e prometido
que da sua descendência sairia o povo seleto, separado dos outros povos.
A certa altura da
história, teria o povo escolhido passado por longo período de servidão no Egito
e teria sido libertado por Moisés, a quem Yavé, o único deus verdadeiro, teria
dado uma lei. Nessa lei, que considerava os hebreus separados dos
povos, houve também uma separação entre animais que eles poderiam comer e os que
não poderiam: "Eu, o Senhor vosso Deus, vos separei dos povos. Fareis, pois
distinção entre os animais limpos e imundos, e entre as aves imundas e as
limpas ... as quais cousas apartei de vós, para tê-las por imundas... e
separei-vos dos povos, para serdes meus" (Levíticos, 20: 24 a 26).
Os animais cuja carne foi proibida são chamados de imundos. E o sangue
continuou proibido, mesmo o dos animais que poderiam ser comidos, chamados
limpos: "Nenhum sangue comereis" (Levíticos, 7: 26).
Quando surgiu o
Cristianismo, a ala dominante, cujos escritos foram selecionados para compor o
Novo Testamento, tendo em vista que, para cristãos, não haveria mais a separação entre judeus e
gentios, acabou também a separação entre alimentos.
Um dos textos atribuídos ao apóstolo Paulo
diz
: "Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida...
porque tudo isso tem sido sombras das cousas que haviam de vir; porém o corpo é
de Cristo ... Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como
se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não
proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos
homens?" (Colossenses, 2: 16, 17 e 20).
A solução de uma
controvérsia doutrinária, ensinando alguns que os conversos ao cristianismo se
deveriam circuncidar e observar a lei (Atos, 15: 5), teria sido a seguinte:
"pareceu bem aos apóstolos" enviar algumas instruções sobre do que deveriam os
cristãos se abster. Entre as abstenções, estavam a abstinência das "coisas
sacrificadas aos ídolos, bem como do sangue, da carne de animais
sufocados" (que normalmente fica impregnada de sangue), não havendo nenhuma
referência a animais imundos (Atos, 15: 22 a 29). Mais uma prova está aí de que
a distinção entre limpos e imundos, como típica, no entender dos cristãos
primitivos, não mais vigorava para eles.
Escrevendo aos
romanos, Paulo afirmou: "Eu sei e disso estou persuadido no Senhor Jesus, que
nenhuma coisa é de si mesma impura, salvo para aquele que assim a considera;
para esse é impura" (Romanos, 14: 14).
Dos textos acima
se deduz que o grupo cristão dominante concluiu que poderia comer de todos os
animais, não havendo mais essa separação entre limpos e imundo, que eles
consideravam coisas figuradas, já sem validade para eles. O sangue, porém,
teria continuado proibido.
É com base na
referida proibição de comer sangue, que um grupo religioso atual ainda prefere a
morte a fazer uma transfusão de sangue. Ainda argumentam:
Se o médico
proibir você de tomar bebida alcoólica, você irá injetá-la na veia?
Não levam em consideração que um médico desaconselha a bebida para alguém por
questão de saúde, e a proibição de comer sangue nada tinha a ver com o efeito
nocivo sobre o organismo, mas por ser o sangue a vida do animal.
Nos primórdios do
cristianismo jamais se cogitava que um dia fosse possível transferir sangue de
uma pessoa para outra. Se esse recurso já existisse, talvez o mestre
cristão tivesse feito essa ressalva, uma vez que é coisa muito diferente de comer
sangue de animal. Comer sangue seria um desrespeito à vida, no conceito
religioso da época. Passar sangue de uma pessoa para outra é tentativa de
salvar a vida, e quase sempre salva mesmo. Todavia, por incrível que pareça, ainda há cristãos hoje que
consideram tudo igual, preferindo morrer a receber sangue de outra pessoa.