SAUDADE DO TREMA
Depois da
entrada em vigor do último acordo ortográfico, sempre que vou escrever
“cinquenta” sinto saudade daquele sinalzinho que para mim era tão importante,
mas que os “velhinhos” convencionaram assassinar. Faz muita falta o saudoso
trema. Se, quando ele existia, muitas pessoas já cometiam erros de pronúncia,
agora as coisas só pioraram.
Recentemente, ao ouvir alguém do meu convívio falar de “prequestionamento”,
pronunciando o “u” da palavra, fui informar que esse “u” não deveria ser
pronunciado, ouvi que depois da eliminação do trema a pronúncia continuou a
mesma. Tive que informar à pessoa que, mesmo antes de sua supressão, o trema já
não existia naquela palavra. Mas, ela realmente já havia ouvido de várias
pessoas idosas do meio jurídico a palavra pronunciada com o “u” sonoro. Muitas
pessoas não entendiam a função do trema, pronunciando sem ele palavras onde ele
existia ou pronunciando com ele onde ele não estava. E, se isso ocorria, agora a
situação ficará muito mais grave.
Para quem já conhece a língua, os termos muito comuns onde o trema foi eliminado
não oferecem dificuldades; mas para quem a está aprendendo, ele fará muita falta.
Entretanto, vocábulos de uso raro irão causar confusão até nos próprios
brasileiros, portugueses e outros povos lusófonos. Termos como “aquestos”, “equino”,
etc. não são de uso constante, e irá ficar a confusão, uns pronunciando o “u” e
outros não.
No interior onde nasci não era comum ouvir-se a palavra “tranqüilo” (usávamos
outras palavras sinônimas). Quando aprendi a ler e certo dia deparei com a
palavra em um livro, vendo aqueles dois pontinhos em cima do “u”, eu não tinha
noção do que aquilo significava e imaginei que esse termo fosse pronunciado da
mesma forma que se pronuncia “aquilo”. Posteriormente, ouvi uma pessoa falar a
palavra de forma correta, aí é que deduzi a função do trema, o que confirmei
posteriormente em noções gramaticais.
Lembro-me também de uma professora do primário dizendo sobre aluno “freqüentar”
a escola, e ela falava como se o trema não existisse na palavra.
Pensando em exemplos como estes, onde, mesmo com a existência do trema, pessoas
erravam ao falar, imagino que a partir de agora, o problema será muito agravado.
Sabemos que muitas palavras que em tempos mais remotos tinham o “u” sonoro e
depois ele perdeu a sonoridade em resultado dos erros de pronúncia que se
popularizaram e tomaram lugar das palavras corretas. Antiguidade, por exemplo,
tinha o “u” sonoro e perdeu seu som no decorrer do tempo. O mesmo foi o caso de
“questão”, “questionamento” e “prequestionamento”. No latim, a palavra
“quaestio” tinha o “u” sonoro, e a nossa “questão” já foi “qüestion” e “qüestão".
Mas, atualmente, pronunciar esse “u” é um erro ortoépico. E toda essa evolução
vocabular é movida pelos erros, que, ao serem cometidos pela maior parte da
população, são consagrados como variantes das palavras e, gradativamente, a
pronúncia anterior desaparece do cotidiano das pessoas.
A inexistência de sinais gráficos indicadores em letras com mais de um som tende
a gerar o que ocorreu na língua inglesa: a palavra “but”, correspondente ao
nosso “mas”, é pronunciada “bat”, “bât”, “bur” (exemplo: Jonh Lennon em
Mother), “bar” (Conjunto Abba em The Winer Take it All) e assim por
diante.
Com a supressão do trema, a pronúncia das sílabas “gue”, “gui”, “que” e “qui” se
transformará em uma verdadeira torre de babel, apesar de a globalização atual
ser a melhor ferramenta de uniformização da língua. Pois, embora com menos
freqüência do que no passado, ainda ouvimos muito os próprios apresentadores de
programas de TV e rádio dizerem coisas erradas.
Quem preza pela boa linguagem, com certeza irá sentir saudade do trema.
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